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'Se eu recebi tanto privilégio, preciso distribuir isso', diz Rubel

Kamille Viola

31/01/2020 13h10

Rubel começa a preparar novo álbum: Foto: divulgação/Ibrahem Hasan

Depois do sucesso do primeiro disco, 'Pearl', de 2013, foi inevitável o frio na barriga do segundo álbum. O cantor e compositor Rubel tinha visto seu trabalho tomar uma proporção que ele não imaginava depois que o clipe da música "Quando bate aquela saudade", hoje com 42,5 milhões de visualizações, viralizou. Com o crescimento de seu alcance, veio o medo do passo seguinte. "Eu tinha muito receio sobre esse mito do segundo disco, de ser, de alguma forma um trabalho que define a carreira de muitos artistas para melhor ou para pior. E, esse padrão, de alguma forma, existe, se você observar", admite ele, em entrevista ao blog.

Ainda assim, ele contrariou o dito popular e mexeu em time que estava ganhando, trazendo influências do rap, do samba, da MPB e da música eletrônica para 'Casas', seu segundo álbum, lançado em 2018.  Agora, Rubel começa a tirar o pé do acelerador para mergulhar no processo do próximo disco. Mas sem pressa: a ideia é lançar em 2021 ou 2022. Uma das últimas chances para conferir a turnê de 'Casas' será este sábado, na Fundição Progresso, quando ele divide a noite com Gal Costa.

Ainda compondo as primeiras faixas do novo trabalho, ele conta que tem se inspirado na literatura, sobretudo no realismo fantástico, e que pretende que suas canções digam mais sobre seu entorno do que sobre si próprio. "Eu quero muito poder falar do outro, falar do Brasil, falar do que eu vejo, e menos de mim. Isso inclui, sem dúvida, poder falar sobre política, sobre a situação do Brasil", adianta.

Rubel também reflete sobre sua condição de homem branco e heterossexual em um momento em que as discussões sobre diversidade só fazem crescer no país. "Acho que o meu papel é usar meu privilégio da melhor forma possível", analisa ele. "Espero que meu trabalho seja um instrumento para propagar compreensão e amor. E que eu possa, diretamente, trabalhar com pessoas que estejam fora desse padrão de privilégio do qual eu faço parte", diz. 

Você vai parar ou dar uma diminuída nos shows pra já começar a trabalhar num próximo disco. Quero começar falando do 'Casas', porque sempre tem aquela coisa do segundo disco de um artista que estourou, com um único trabalho ainda. Sempre tem uma expectativa, e queria saber de você o balanço dessa turnê, o que você sentiu? O disco teve hit de novo ("Partilhar", com a dupla Anavitória), igual ao seu primeiro. Como você avalia?

Avalio da melhor forma possível porque, de fato, eu tinha muito receio sobre esse mito do segundo disco, de ser, de alguma forma um trabalho que define a carreira de muitos artistas para melhor ou para pior. E, esse padrão, de alguma forma, existe, se você observar. Então eu trabalhei muito obsessivamente para que ele tivesse, de alguma forma, à altura do primeiro e que, ao mesmo tempo, levasse o trabalho para outro lugar, que não fosse uma tentativa de repetir. E eu acho que o que aconteceu foi exatamente isso, ele foi um disco muito bem aceito pelas pessoas que já conheciam o primeiro e, ao mesmo tempo, conseguiu chegar a muitas pessoas que não conheciam ou não gostavam do meu trabalho. Acho que, por ter explorado um universo musical diferente, por ter uma mistura de hip hop, R&B, samba, para mim foi o melhor dos mundos, porque eu consegui manter o público que tinha construído e, paralelamente, levar o trabalho para muito mais gente. 

Você disse que, na época em que estava compondo o disco, estava escutando muito rap e música brasileira dos anos 70. Continua com essas influências? Você compôs algumas coisas para o novo álbum, não é? O que você tem escutado?

Tenho escutado um pouco menos de hip hop e muita MPB, samba e bossa nova, basicamente tudo o que foi feito na música brasileira ali do final dos anos 50 até o final dos anos 70. O caminho que o próximo está apontando até agora é isso: resgatar um pouquinho a tradição da música brasileira e apontar novos caminhos. Acho que vai ser um disco mais de MPB do que os dois que eu já fiz. É um disco de canção, de letra.

Você tem falado bastante que perdeu qualquer vergonha de ser popular. Seu desejo é ser um artista que chega em todos os cantos do país? O que inspira isso em você artisticamente? Você gravou Maiara e Maraísa, o que já é um contato com esse tipo de coisa muito estourada, mainstream…

Artisticamente, a minha vontade é a de fazer exatamente o tipo de música que eu quero, que eu acredito. Eu não tenho nenhuma vontade de comprometer as coisas que eu crio, as coisas que eu gosto em virtude de ser popular. Agora, o meu objetivo e o que eu sonho, não só para mim, mas para toda essa galera independente e que está vindo nos últimos cinco anos, é conseguir ocupar um lugar de mais destaque no meio popular, fazendo o que a gente faz. Observando o mercado, para mim, tem um desnível muito grande numericamente, em termos de reconhecimento popular, entre o que artistas pop, que fazem música sertaneja e funk, e essa galera independente. Você coloca pessoas que têm mais de dez anos de carreira, e esse desnível eu acho que acontece não pela qualidade musical ou por esses artistas estarem fazendo uma música que seja hermética, difícil. Acho que é muito pela forma como o mercado está estruturado, pela abertura que as rádios e os canais de TV têm. Essa vergonha que eu perdi que é de levar minha música até esses veículos, de tentar penetrar nesses lugares e abrir portas para a galera que está vindo nesse mesmo movimento, nessa estética parecida com a que eu estou fazendo. Isso não quer dizer tirar o espaço de ninguém, acho que o sertanejo é maravilhoso e merece o lugar onde está, o pop e o funk também, mas seria lindo ver essa MPB que está surgindo também ocupar um espaço de popularidade.

Mas, ao mesmo tempos, os próprios artistas da nova MPB, que é essa MPB com inspiração forte no folk, a gente vê eles alcançando grande popularidade. Por exemplo, você gravou com Anavitória, e elas têm um público enorme…

Acho que elas são exemplo perfeito disso tudo que eu estou dizendo. Elas conseguem manter a integridade artística, fazer canção, elas fazem um trabalho lindo e conseguem ser populares ao mesmo tempo. Acho que muito por conta do trabalho delas, que é incrível, e do Felipe (Simas), que é um grande empresário, ele conseguiu achar e abrir essas portas, ele conseguiu achar esses espaços em que uma MPB, de canção romântica e delicada pudesse estar ocupando um espaço de tanta popularidade quanto o funk e o sertanejo. Isso é maravilhoso. 

Você teve músicas em novela ("Quando bate aquela saudade" em 'Onde nascem os fortes', "Partilhar" em "Malhação Vidas Brasileiras", a versão de "Ontem ao luar" em 'Éramos seis'). Sentiu o impacto disso no crescimento do seu público?

Eu estou entendendo mais agora, porque é a primeira vez que tenho uma música (a versão de "Medo bobo", de Maiara e Maraísa) na novela das nove, 'Amor de mãe', e a das nove é um caso à parte, é diferente das outras novelas. Então eu estou entendendo, realmente não sei te dizer. Agora, a minha impressão é que a novela já não é mais tão expressiva quanto era antigamente. O número de seguidores que eu ganhei depois do clipe de "Partilhar", com as Anavitória e com a Marina (Ruy Barbosa) foi gigantesco comparado com o efeito que a novela tem (o vídeo tem mais de 9 milhões de visualizações). Isso é muito nítido, a novela não dá nem dez por cento de crescimento comparado ao que um clipe tem. Então eu acho que a internet ainda é muito mais poderosa ainda do que a novela, hoje em dia.

Porque talvez nem todo o público da novela seja do tipo que vá procurar clipe e artista nas redes. Talvez os fãs da Marina, mais jovens, por exemplo. E, aliás, como é que foi isso dela participar? Lembro dela falando que tinha uma relação pessoal com a música, que ela quis fazer. Como é que foi isso para vocês?

Ao longo do ano passado todo, a Marina sempre postava nos stories do Instagram dela essa música, "Partilhar", a versão original, porque era a música dela com o marido dela. E aí, quando surgiu a ideia do roteiro, que seria um casal, imediatamente me veio ela na cabeça, por saber que ela já tinha uma relação tão forte com essa música e por ela ser uma puta atriz, eu achei que teria a ver e saberia que ela provavelmente iria conseguir trazer uma verdade para essa história, por já ter uma relação pessoal.

E você é formado em Cinema. Como avalia a relação do audiovisual com a música hoje? Esse clipe, por exemplo, foi você que idealizou. Como você vê essa relação do consumo de música…

Eu vou citar a Anitta. No documentário dela, ela fala que brasileiro gosta de ouvir música com imagem. Quando ela fez aquele projeto de quatro clipes seguidos ("Check Matte"), ela falou sobre isso: brasileiro gosta muito de lançamento de música que vem com clipe. Com o YouTube, com a internet, o clipe ficou ainda mais relevante do que era antes, quando era restrito à televisão. Para mim é uma puta oportunidade de poder fazer as duas coisas que eu amo, que são cinema e música, e poder adicionar camadas de significado às composições. "Partilhar" é um exemplo disso, porque eu falei muita coisa na música e as pessoas receberam de uma determinada forma. Só que tinha muito mais coisa que eu queria dizer sobre aquele assunto que eu não conseguia, porque aquela música já estava no mundo. Mas, quando fiz o clipe, pude falar exatamente o que queria para além do que a música está dizendo. Essa soma de significado que é a imagem e a música, eu acho que é uma puta ferramenta para você outros outros significados além do que a letra e do que a imagem está dizendo.

Mas, ao mesmo tempo você já falou que gosta de pensar como um álbum inteiro. A gente está falando de clipe e, assim como a música vem sendo lançada, ele não precisa, necessariamente, estar ligado a um projeto fechado, a um álbum. Mas você falou que tem essa predileção pelo formato. Como costuma ser? Você conceitua, pensa numa ideia para ir compondo as músicas?

Eu fiz dois até agora só, então não tenho um método desenvolvido. Primeiro, juntei tudo o que eu tinha feito naquele momento e gravei da forma mais tosca possível, sem arranjo, sem nada. Então o conceito era o que eu tinha, basicamente. O segundo foi uma coisa mais pensada porque, enfim, naquele momento eu tinha que compor para o disco, não tinha o material prévio, então tive que pensar o conceito e partir disso que você estava falando, da mistura do hip hop com a MPB, usando as referências do que estava ouvindo e usando as coisas que estava vivendo na minha vida. Isso era meio que um mote temático, e agora eu estou tentando ir para um outro lugar que é não falar mais tanto da minha vida, não ser um disco autobiográfico, é ser mais próximo de uma crônica, de um conto do que de um diário. Então esse talvez seja o disco mais estruturado nesse sentido, de ideia, de tema e de letra. Que é começar da literatura, tê-la como ponto de partida e cerne das músicas e, a parte musical vir a reboque disso, do que eu estou querendo dizer. Eu acho que este disco vai estar mais calcado na letra e na literatura do que na música.

Que autores inspiram você?

Para esse disco especificamente, eu estou lendo muito Jorge Amado, Gabriel García Márquez, Borges, Saramago. É porque ele está muito no começo, é muito difícil falar sobre ele, mas a minha vontade é que fosse um disco de realismo fantástico. Que ele pudesse ter esse tom.

Você pensa em lançar este ano ainda, ou não?

Não, acho que vai ser ano que vem, se  tudo der certo. Se não, só no outro. Vai ser curioso ler isso daqui a um ano, dois e ver seu meu objetivo se concretizou.

Você se sente, de alguma forma, impelido, com vontade de falar alguma coisa sobre o momento que o Brasil está vivendo? É um período complicado, especialmente para as artes e a cultura, conturbado politicamente… Isso influencia você direta ou indiretamente, como artista?

Os dois. Eu acho que o movimento do próximo disco tem tudo a ver com isso. Ele ser mais próximo de um conto ou de uma crônica do que de um diário tem a ver com isso. Eu quero muito poder falar do outro, falar do Brasil, falar do que eu vejo, e menos de mim. Isso inclui, sem dúvida, poder falar sobre política, sobre a situação do Brasil. O que eu acho mais difícil neste momento é saber o que dizer. Para mim, a música política mais contundente desses últimos anos é "OK, OK, OK", do Gil, que é justamente sobre isso: como é difícil você ter um discurso relevante, e não óbvio, neste momento em que as coisas — apesar da situação que está posta ser muito evidente, ainda é muito confuso e muito difícil falar sobre isso, sem ter um distanciamento histórico. Então, para mim, começa muito na base da base, que é: o que eu quero dizer sobre isso? Sobre o Brasil? Sobre a situação atual? Mas, sem dúvida, eu estou nesse movimento de falar sobre isso, mais do que falar sobre amor ou as minhas questões, que não importam para ninguém, além de mim, eu acho (risos).

Acaba que o trabalho artístico está muito ameaçado no sentido prático, com cortes de investimentos para certos tipos de trabalhos ou realizadores específicos, interferências em editais públicos… Você sente dificuldade nesse quesito? E também influi no fato das pessoas terem menos dinheiro para ir a show, por causa da conjuntura econômica…

No cinema, especificamente, sim, eu sinto muito isso, porque o que está acontecendo é uma forma indireta de censura — é uma forma direta de censura, na verdade. Quando se determina que certos temas são impedidos de receber verba pública, isso é uma forma clara e direta de se censurar. Acho isso é muito grave. No cinema, principalmente, porque é uma arte muito cara que aqui no Brasil depende cem por cento do dinheiro público, ela não acontece sem ele. Então acho mais preocupante ainda. A música, de alguma forma, está encontrando maneiras de ser independente, de não precisar tanto do dinheiro do governo. Isso por um lado é bom, porque acaba que a gente ainda tem liberdade de se expressar da forma que quer, de falar o que quiser. Mas, sem dúvida, a situação é extremamente preocupante. E acho que a crise econômica se reflete, sim, no meio musical. Vem sendo muito difícil circular. Isso é uma realidade para muita gente. O tamanho do público tem diminuído nos shows, para a grande maioria dos artistas, porque, quando você está em crise, a arte acaba sendo uma das últimas prioridades, né? As pessoas precisam comer, precisam se transportar para outros lugares, então a arte acaba ficando em segundo plano.

Nos últimos anos, sobretudo na música independente, a gente vem falando sobre questões de representatividade, porque a música — como várias áreas no Brasil — sempre foi dominada por homens brancos héteros. E as discussões sobre diversidade têm crescido, no geral. Como você se sente sendo exatamente esse grupo que vem sendo questionado? Como você pensa seu papel neste momento?

Acho que o meu papel é usar meu privilégio da melhor forma possível. Porque, se eu nasci branco, numa família rica, hétero, e tudo isso me ajudou a ocupar um lugar de relevância e a construir uma carreira — porque, sem dúvida, ajudou, e o fato de ter estudado em bons colégios, de poder ter estudado fora —, então, se eu recebi tanto, eu tenho que dar muito. Não tenho que me culpar pelas coisas que recebi, tenho que usar elas de forma sábia e generosa. Espero que meu trabalho seja um instrumento para propagar compreensão e amor. E que eu possa, diretamente, trabalhar com pessoas que estejam fora desse padrão de privilégio do qual eu faço parte. Trabalhar com mulheres, com pessoas negras, incluir da melhor possível. E, futuramente, quando eu tiver mais poder de influência ainda, construir trabalhos sociais e uma escola. É uma coisa que eu penso muito em fazer, que eu acho que na educação está a base da revolução maior, nesse sentido de distribuição de renda e de privilégios. Resumindo, acho que é isso: se eu recebi tanto privilégio, preciso distribuir isso e me doar da melhor forma possível.

Uma escola de música ou escola mesmo?

Olha, isso é um sonho muito a longo prazo, mas tenho muita vontade de fazer uma escola mesmo.

Mudando de assunto e falando sobre o show de sábado: como você espera que seja dividir uma noite com a Gal?

Olha, para mim é muito difícil falar sobre isso, porque é muito surreal ainda. A Gal é uma das minhas maiores ídolas, é uma das pessoas que eu mais admiro, que eu mais ouvi. É uma das pessoas mais importantes para a construção da música brasileira. Ainda acho muito surreal eu poder dividir o palco com ela, cantar com ela. É muito louco. Não tenho como articular melhor isso, porque neste momento eu só acho muito louco.

Vai lá:
Rubel + Gal Costa
Quando: Sábado, 1º de fevereiro, às 22h (abertura dos portões)
Onde: Rua dos Arcos, 24 – Lapa
Quanto: R$ 60 (pista, meia-entrada com 1kg de alimento) a R$ 300 (frisa, inteira)

Sobre a autora

Kamille Viola é jornalista, com passagens e colaborações por veículos como O Dia, O Globo, O Estado de S. Paulo, Billboard Brasil, Bizz e Canal Futura, entre outros. Nascida e criada no Rio, graças ao jornalismo já andou pelos mais diversos cantos da cidade.

Sobre o blog

Do pé-sujo mais tradicional ao mais novo (e interessante) restaurante moderninho, do melhor show da semana à festa mais comentada, este blog busca fazer jus à principal paixão do carioca: a rua.

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