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'A relação com o feminismo tem dado voz às compositoras', diz Tulipa Ruiz

Kamille Viola

31/05/2019 12h03

Tulipa canta no Circo. Foto: divulgação/Rodrigo Shimidt

Tulipa Ruiz começou a carreira profissionalmente há nove anos, quando lançou o disco 'Efêmera'. Segundo ela, tudo sem maiores pretensões. Não demorou muito para a cantora e compositora cair nas graças da crítica e do público. "Eu não sabia nem se eu prensava ele ou não, se eu fazia o CD. Porque foi em 2010, ali a venda de CD já estava comprometida, várias lojas já tinham fechado", conta ela, que se apresenta neste sábado no Circo Voador, em noite que também conta com o show de sua amiga Anelis Assumpção.

Depois de lançar em 2017 'TU', um disco com regravações e algumas faixas inéditas, ela conta que planeja um novo trabalho para 2020, quando celebra dez anos de carreira. "Eu quero fazer muitas comemorações, ritualizar muito esse aniversário", diz Tulipa, que celebra o destaque que as compositoras vêm recebendo atualmente, o que não acontecia tanto quando ela surgiu. "Acho que esse entendimento e essa nossa relação cotidiana com o feminismo têm nos dado muita voz, também têm nos fortalecido demais. As nossas expressões estão muito à flor da pele. Está sendo muito catártico, muito importante compor no contemporâneo", comemora.

No Circo, ela sobe ao palco acompanhada do power trio Gabriel Mayall, o Bubu (que toca com o Los Hermanos, no baixo), Samuel Fraga (bateria) e Gustavo Ruiz (guitarra), irmão da cantora e produtor de todos os seus discos. O repertório vai passear pelos quatro álbuns da cantora: 'Efêmera', 'Tudo tanto', 'Dancê' e 'Tu'. Já Anelis traz o show de 'Taurina', lançado ano passado.

Você e a Anelis têm uma relação antiga, você acabou de fazer o show de 70 de nascimento do Itamar com ela na Virada Cultural. Sei que vem desde o tempo que o seu pai tocou com o Itamar também. Pode falar um pouco dessa relação de vocês? E como vai ser essa noite, como vai ser a interação?

É, a gente tem essa aproximação, esse "parentesco", porque meu pai (Luiz Chagas) faz parte da banda Isca de Polícia, que acompanhou o Itamar durante muito tempo, e também eram grandes amigos. A gente se conheceu e cruzou muitas vezes quando pequenas, quando bebês, nos camarins da vida e tal. Só que eu cresci em Minas, eu fui para lá pequena e fiquei até uns 20. Depois, quando eu me mudei para cá para fazer faculdade, o meu irmão já tinha banda com a Anelis (Massa Sonora, que depois virou Dona Zica), era amigo dela. O Gustavo veio para cá com 18 e eu, depois, com 22. Então, quando eu cheguei, essa reaproximação entre os filhos dos caras da banda já tinha acontecido. Eu fiquei amiga da Anelis logo quando eu cheguei em São Paulo para morar definitivamente. E nunca mais perdermos o contato. Na faculdade, eu tinha uma banda e a Anelis fazia parte. Eu lembro do dia que a Anelis ficou grávida. A gente é amiga mesmo, tem muita história para contar e, atualmente, mora perto, está vizinha, o que nos aproxima mais. Esse show que aconteceu na Virada, que comemora os 70 anos do Itamar, que faz parte de um grande projeto com várias celebrações, foi muito especial, porque para pensar no repertório para esse show a gente acessou muito a nossa memória afetiva, então foi muito forte. Dividir essa noite com a Anelis no Circo também é muito especial, por conta da nossa afinidade, do nosso afeto. Ela já participou algumas vezes do meu show, eu do dela, o release do disco anterior eu que escrevi, o 'Taurina' eu acompanhei muito o processo, gosto muito desse disco. A Anelis também está sempre comigo nos meus shows, estava no último do 'Dancê'. Enfim, é uma noite de duas pessoas que se gostam, e as pessoas que tocam nas nossas bandas se conhecem, se curtem. Vai ser um grande barato elas estarem juntas. A gente está armando, vai ser inevitável a interação (risos). Não sabemos exatamente o que vai acontecer, em qual show. É muito fácil ser a qualquer momento, a gente tem intimidade para isso. São dois shows separados de duas pessoas que são muito amalgamadas, a interação vai ser natural.

O último disco que você lançou foi o 'TU', que era híbrido, tinha músicas novas e regravações de canções antigas em formato diferente. Mas, pelo que eu vi, não é esse show que vem para o Circo…

É isso. O 'TU' foi um disco que aconteceu no meio do caminho, sem ser um projeto pensado com muita antecedência. Ele veio da necessidade da gente registrar os arranjos das músicas de uma maneira mais crua. Porque eu fiz bastante com o Gustavo o formato voz e violão, sobretudo fora do país, e parecia que as músicas ficavam num estado mais natural. Então o 'TU' veio da necessidade de registrar as músicas desse jeito, o que não ia acontecer num disco novo. Só que, na hora de começar a gravar, eu acabei ficando empolgada no estúdio, e aí o que seria um disco de registro daqueles arranjos das músicas que já existiam se misturou com canções novas, a gente acabou compondo um monte de coisa que nem fazia parte do plano. Nós fizemos ele no Circo Voador e estamos no finalzinho da turnê dele, eu ainda tenho feito apresentações do 'TU'. Só que, como é um show mais cru, eu tenho preferido fazer em teatros mais fechados, não é sempre que eu levo ele nos lugares. E, no Circo Voador, eu estou com saudade de fazer show com banda. Agora estou com um com o meu power trio, que é o carioca Gabriel Mayall, o Bubu no baixo, o Samuel Fraga na bateria e o Gustavo Ruiz na guitarra e na produção musical. É uma apresentação com todo meu repertório e com a sonoridade do Pipoco das Galáxias, que é esse meu power trio. Eu estou muito amarradona.

E você já pensa em um próximo trabalho?

A gente começa a pensar no disco novo este ano, no segundo semestre, para um pouquinho para inventar música nova. E eu já estou ficando com saudade de gravar. Eu não sou uma artista que componha freneticamente. Eu gosto de viver muito o tempo de uma turnê e ritualizar muito o tempo de estúdio. Mas eu sou mais do show do que do estúdio. E eu estou começando a ficar com saudade de gravar, e isso é uma coisa bem inédita para mim (risos). É um bom sinal.

Como você compõe normalmente? Usa o violão? Como é seu processo?

Varia muito. Eu sempre tenho um violão em casa, quando vou fazer música. Eu gosto de ter o instrumento para partir dele, se fizer parte do processo, então muita coisa começa no violão. Mas eu gosto muito de compor no Garage Band (software de gravação) também. Eu monto umas coisas, faço minhas garatujas sonoras ali, gosto demais desse programa, porque eu acho ele tão simples de mexer quanto o Paintbrush para desenho (risos). Então eu rendo bem no Garage Band. Faço muita música sozinha, mas eu tenho muita parceria com o Gustavo. E a nossa parceria é muito legal, porque não existe uma hierarquia na composição. Pelo fato dele ser um superinstrumentista, é muito fácil para mim a coisa da harmonia e até mesmo da melodia partir dele. Mas eu gosto de inverter bastante esses papéis, eu gosto de instigar o Gustavo em letra, eu gosto de sugerir harmonia para ele e as minhas melodias eu gosto de desenhar todas. É muito legal, porque, quando eu componho sozinha, é muito terapêutico e, quando eu exercito a parceria, é sempre uma troca muito nutritiva. Mas eu tenho sempre caderno, caneta, gravador, se puder ter um violão perto é bom. A forma de registrar é sempre parecida, mas o processo muda bastante. Às vezes a música vem inteira, vem uma Eureka que eu consigo fazer a maior parte, outras vezes ela vem de um exercício muito longo de composição. Varia muito.

E o que costuma te inspirar? São coisas pessoais, coisas que estão acontecendo no mundo?

Eu me instigo muito pelo agora. Pela presença e pelo agora. Eu costumo falar muito sobre o cotidiano, abordar coisas cotidianas de de maneira aprofundada, olhar o agora com mais presença. Acho que esse é meu principal exercício ao pensar em arte.

Todos esses anos trabalhando como o seu irmão, como fica a relação? Se você estão juntos é porque está dando certo, mas enfim, como é essa convivência?

Eu costumo falar que o Gustavo é meu irmão e meu brother. A gente é muito amigo e tem uma diferença de idade de um ano. Então, na adolescência chegou uma hora que os nossos amigos viraram os mesmos. A gente anda com a mesma turma. Independentemente de nós trabalharmos junto, nós sempre ouvimos som junto, falamos sobre os livros que estávamos lendo, fomos ao cinema juntos… Temos uma troca muito especial, por conta da nossa intimidade, do repertório de vida em comum. Então é muito prático trabalhar com o Gustavo. Ele entende muito a minha musicalidade. Acho que um produtor musical tem que ter uma psicologia muito gigantesca para lidar com a musicalidade do outro (risos). E isso vem pelos discos que ele produz, ele acabou de produzir o do Maurício Pereira, trabalha com várias outras pessoas, gravou esses dias no estúdio dele Mateus Aleluia. E é muito legal ver a relação, as pessoas falando do encontro com ele na música. Acho que, pelo fato dele ser um cara muito musical, a troca com ele flui. Então é prático fazer música com o Gustavo, é simples. A gente não gira muito lâmpada desse sentido. Ele tem os rolês dele na música também, eu tenho os meus, mas a gente gosta de som. Enquanto for bom fazer música junto, a gente vai fazer.

No ano que vem são os dez anos do seu primeiro disco, o 'Efêmera'. É um marco. Como você vê esse percurso, essa trajetória até aqui?

Quando eu fiz esse primeiro disco, eu não tinha nenhuma expectativa em relação à profissão, em relação ao ofício de ser cantora, de ser compositora. Vim de uma família de músicos, andava com gente que fazia música, curtia fazer música e fiz um disco mais por curtir essa atmosfera do que esperar que pudesse ser um trabalho. Então o 'Efêmera' me surpreendeu desde o começo, porque eu não sabia nem se eu prensava ele ou não, se eu fazia o CD. Porque foi em 2010, ali a venda de CD já estava comprometida, várias lojas já tinham fechado. Eu falei: "Nossa, eu vou começar em um momento em que nem se vende mais disco." E eu trabalhei em loja de disco na adolescência, eu observei com muito pesar as minhas preferidas fechando. E o 'Efêmera' é um álbum que eu lancei em 2010 e que eu nunca parei de prensar, eu não posso ficar sem CD dele. Até hoje ele me surpreende: ele tem dez anos, e uma vida e uma força que eu realmente não esperava. E eu aprendi muito com ele, porque eu não sabia o que era fazer disco, o que era uma editora, o que era registrar uma música. Eu só gostava de fazer som. 'Efêmera' me profissionalizou, me apresentou o ofício de fazer música: 'Olha, este é o seu trabalho, esta é sua obra.' Ele me fortaleceu demais. E dez anos, nossa, voou demais (risos). Passou muito rápido esse tempo. Eu quero fazer muitas comemorações, ritualizar muito esse aniversário. E tudo fez muito sentido, porque o 'Efêmera' fala da durabilidade poética. Então eu acho que isso deve ser muito relembrado. É um disco que me fortalece muito até hoje.

Nesses dez anos, mudou para caramba a forma de se consumir música, de se ouvir música. Hoje em dia nem se baixa mais um disco, soa uma coisa antiga. A gente vive uma era da playlist, existem gerações que já cresceram com esse hábito, conheceram a música de uma outra forma. Qual o sentido de se pensar em álbuns hoje em dia? A gente vê muitos artistas lançando single, uma faixa atrás da outra. Qual o sentido de se planejar um álbum, de se pensar numa obra fechada?

O meu processo eu gosto de pensar de uma maneira muito analógica e depois adaptar para o digital. Eu sempre vou pensar na capa do meu disco em vinil, que é a escala maior. Mas eu tenho também que entender que a capa que eu for inventar para um álbum ou para um single tem que fazer sentido numa escala muito pequenininha, que é a da tela de um celular, de um streaming. Existe esse desafio gráfico de escala de uma coisa para a outra. Eu gosto de narrativa, então sempre vou pensar num disco com onze músicas. Mas gosto depois de 'picotar' essas músicas, embaralhar, e elas podem fazer sentido como single. Desde o 'Efêmera', quando a gente colocava o disco no computador, o iTunes já dava uma embaralhada. A gente já perdeu isso da narrativa do álbum há muito tempo. Quem é apaixonado por isso vai buscar isso no vinil. O artista hoje na verdade tem que estar presente em todos esses lugares. É muito importante estar no YouTube, em todos os streamings. Porque as entregas são muitas. Essas são as lojas, essas são as prateleiras. Então a gente tem que inventar a música e colocar ela em todos esses lugares. E essa coisa do single eu gosto muito, e na verdade nem é uma coisa nova: nos anos 60 as gravadores lançavam um monte de singles, que eram aqueles disquinhos que tinham lado B e lado A (compactos). Eu continuo sendo romântica nesse aspecto: acho um charme lançar um single, mas eu sempre vou pensar na versão do disquinho pequenininho em vinil também. Acho importante a gente pensar analogicamente e adaptar para o digital. Se a gente pensa analogicamente, o conteúdo tem mais estrutura para ser picotado no digital. É mais ou menos por aí.

Você costuma pensar em conceito quando começa a fazer um disco?

Eu penso também. O 'TU' foi um disco que a gente pensou com muito conceito, o 'Dancê' também. Eu tenho intuições, mais do que conceito. E vou colecionando tudo o que faz sentido com o que eu intuo. O processo vai mostrando muita coisa para a gente. Eu começo a fazer um disco, eu presto atenção a todos os sinais. É como se eu colecionasse os sinais. Tudo passa a significar muito, desde que eu acordo até a hora de dormir: tudo faz sentido e tudo pode entrar para o disco de alguma maneira.

A gente está num momento, mais do que quando você começou, de destaque para as compositoras. Não que elas sejam uma novidade no Brasil — não são —, mas acho que hoje se fala muito. E a gente vê cantoras que são compositoras tendo algum destaque, desde o chamado 'midstream' até o mainstream mesmo. Como você vê esse momento, ou movimento?

Eu gosto muito da palavra cantautora. O Brasil é um país muito conhecido pelas suas intérpretes, maravilhosas, mas cada vez mais ele é um país também reconhecido por suas compositoras, por suas cantautoras. Eu só comecei a cantar porque comecei a fazer música. Compor me empoderou, me fortaleceu demais, me deu muita coragem. Foi libertador fazer música e entender que eu podia cantar o que eu estava inventando. E eu acho que esse entendimento e essa nossa relação cotidiana com o feminismo têm nos dado muita voz, também têm nos fortalecido demais. As nossas expressões estão muito à flor da pele. Está sendo muito catártico, muito importante compor no contemporâneo. Para mim, compor foi fundamental para me entender cantora e até me entender intérprete. Que foi uma segunda coisa, eu demorei para ficar à vontade e também ficar a fim de cantar as coisas de outras pessoas. Porque cantar as minhas é muito fácil, eu posso inclusive mudar na hora o que eu inventei. Às vezes eu até faço isso, tenho letras que hoje canto um pouco diferente. Eu faço essas coisas nas minhas músicas que já foram gravadas. Para mim, um disco é uma foto de uma música. Ela tem o antes e o depois dessa foto. Quando a foto é minha, eu tenho liberdade para mudar. E, como intérprete, eu já demorei mais para me entender como autora. E isso é um desafio na verdade muito mágico e libertador. Acho que também por isso a gente é um país reconhecido por nossas grandes intérpretes, porque elas são absolutamente autorais no que elas fazem. Na verdade, é tudo sobre autoria.

Você estava dizendo que gosta de olhar para o agora quando compõe, e, desde que você lançou o clipe de "Pedrinho", eu vi você falando sobre o instante que o Brasil está vivendo. O que pensa sobre ser artista nesse atual momento do Brasil?

O clipe de "Pedrinho" veio dessa necessidade dessa reflexão sobre isso. Eu sempre tinha falado para o Pedro Henrique França, que é um dos diretores do clipe, que ele faria o clipe, porque muitas pessoas achavam que ele era o personagem da música. Eu dizia: "Se algum dia existir esse clipe, você vai fazer, para a gente confundir ainda mais as pessoas." A gente demorou demais para fazer, e ele veio num momento que a gente precisava desse figura, desse eu-lírico para fortalecer, para estar perto nesse instante tão austero e tão difícil que a gente está vivendo. O Pedro falou: "Eu intuo que ele vem a partir da performance que o Wagner Schwartz fez e foi censurada ("A besta", apresentada no Museu de Arte Moderna de São Paulo, que rendeu linchamento virtual ao artista e protestos no museu, com direito a agressões físicas)." O clipe começa com essa citação, ele é a partir dessa opressão. E ele fala sobre como a gente deve se libertar de todas essas opressões que estamos vivendo. Como libertar as nossas expressões, os nossos corpos. E eu acho que isso é uma reflexão cotidiana, não tem sido fácil estar no Brasil, viver no Brasil, esse é o pensamento que a gente tem o tempo todo como artista, como cidadão, e a gente tem entendido como não enlouquecer cotidianamente. E eu acho que fazendo arte, estando na arte é uma maneira da gente entender a nossa era, a nossa atmosfera de uma maneira muito profunda, mas também coletiva. Desde o final do 'Dancê' — ele termina com uma música que se chama "Algo maior" (com participação do Metá Metá) — eu venho com um aperto no peito. A gente está com um aperto no peito, e temos falado sobre isso nos nossos discos, nos nossos livros, na padaria, nos cafés, no banco, nas entrevistas, o tempo todo. Eu não sei nem se eu respondi sua pergunta.

Vai lá:
Tulipa Ruiz e Anelis Assumpção
Quando: Sábado, 1º de junho, às 22h (abertura dos portões)
Onde: Circo Voador. Rua dos Arcos, s/nº – Lapa
Quanto: R$ 50 (meia-entrada com 1kg de alimento, 1º lote) a R$ 120 (inteira, 2º lote)

Sobre a autora

Kamille Viola é jornalista, com passagens e colaborações por veículos como O Dia, O Globo, O Estado de S. Paulo, Billboard Brasil, Bizz e Canal Futura, entre outros. Nascida e criada no Rio, graças ao jornalismo já andou pelos mais diversos cantos da cidade.

Sobre o blog

Do pé-sujo mais tradicional ao mais novo (e interessante) restaurante moderninho, do melhor show da semana à festa mais comentada, este blog busca fazer jus à principal paixão do carioca: a rua.

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