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'As compositoras estão mais em evidência agora', diz Sofia Vaz, da Baleia

Kamille Viola

30/08/2019 08h00

A banda Baleia se apresenta na Casa Julieta de Serpa. Foto: divulgação

No ano passado, a banda carioca Baleia começou um processo que chamou de disco vivo: uma obra em aberto, que vem sendo mostrada aos poucos para o público nas redes e nos shows, com participação dos próprios fãs em algumas etapas. O trabalho foi batizado de 'Coração fantasma' e já teve dois capítulos lançados. O primeiro saiu em setembro do ano passado e trouxe três músicas. O segundo, em abril de 2019, veio com seis — uma delas, "Eu Mal Estou Aqui", conta com as participações do trio paranaense Tuyo e do pianista pernambucano Vitor Araújo.

Enquanto um capítulo foi revelado ao público, outro estava sendo criado. Nos shows, músicas já lançadas se misturam com as que ainda estão sendo trabalhadas. Nesta sexta, na Casa Julieta de Serpa, no Flamengo, é uma chance de conferir ao vivo essa proposta. "É um caminho que não foi feito ainda, então nós estamos nos deparando com as possibilidades e com os obstáculos enquanto fazemos", comenta Sofia Vaz (voz, teclados e guitarra), que forma a banda com seu irmão Gabriel Vaz (voz, bateria e guitarra), Felipe Pacheco Ventura (guitarra e violino) e Cairê Rego (baixo). Em entrevista ao blog, ela também sobre o aumento da visibilidade das mulheres na música brasileira, entre outros temas. "Acho que isso tem ver também com as discussões sobre as questões das mulheres, o feminismo. Acaba se refletindo na música também", analisa.

Como está sendo o processo do disco vivo? Vocês já lançaram duas partes. Como tem sido até agora?

Pensando profissionalmente, criativamente, é um processo totalmente diferente e que tem sido uma experiência muito rica. Ao mesmo tempo muito trabalhosa. A gente tem, por um lado, a possibilidade de criar as músicas de uma forma mais orgânica, mais no fluxo. Elas vão sendo trabalhadas ao longo do processo, então nós tocamos nos shows, sentimos como ela está, trabalhamos um pouco mais no arranjo, voltamos com ela. Não é aquela coisa da gente ter que resolver tudo de uma vez — geralmente, vamos para um estúdio e gravamos tudo de uma vez, é como se fosse um fotograma daquele momento. Desta vez, no instante em que a gente registra a música, ela já passou por um processo, a gente já teve ideia, mudou de ideia… Essa possibilidade tem sido muito interessante para nós. Por outro lado, é extremamente trabalhoso, porque a gente está constantemente nesse processo. Não consegue focar nisso de uma vez e depois seguir com os shows. Está o tempo todo trabalhando. Pessoalmente, eu sinto que é um caminho mais divertido, mais interessante do que o medo que sempre foi feito, que é a imersão em uma semana, dez dias dentro de um estúdio. É bem bacana, a gente consegue trocar mais com o público, consegue desenvolver outras coisas que não eram possíveis antes e que se tornaram por conta do mercado ter mudado, das opções de lançamento, das plataformas digitais, tudo foi permitindo uma agenda mais flexível e um trabalho mais fluido entre o que nós fazemos aqui dentro, fazemos no show, o público, a participação: isso tudo misturou.

Como tem sido essa troca com o público? Até que ponto está indo a influência dele no resultado do que vocês estão fazendo?

Na prática, o que nós temos feito bastante que tem sido mais viável e mais interessante é trabalhar as músicas e mostrar essas músicas muito antes de elas estarem prontas. Nessa hora do show, a gente está realmente, de um forma muito mais vulnerável, testando as músicas. Nós tocamos — claro, com público, sem público — e estamos pensando: "O que está funcionando? O que (ela) está pedindo? Como está sendo a recepção?" Tem gente que vem falar conosco a respeito da música: "Ó, eles tocaram música nova, eu nunca ouvi!". E aí dá opinião. Temos brincado quando possível. Então, se a gente começa a gravar, muitas vezes a música não está fechada, a gente não tem um nome para ela, então joga a letra que numa rede social e fala: "O que vocês acham? Que nome isso aqui pode ter? Como vocês interpretam isso?". Já fizemos isso também, e foi bem interessante. Está indo por aí, a gente está testando coisas. É um caminho que não foi feito ainda, então nós estamos nos deparando com as possibilidades e com os obstáculos enquanto fazemos.

E vocês têm um prazo final para terminar o processo? Porque, enfim, vocês estão numa gravadora, que tem todo um calendário…

É, mas é isso: o mercado mudou muito. Aquela coisa da gravadora, que você tinha um contrato e tinha que mostrar um produto até um prazo tal não funciona mais assim. Até dá para ver outros artistas que vão lançando singles, hoje em dia é uma coisa muito mais normal do que você lançar necessariamente um álbum todo de uma vez. E o que a gente tem com a Sony também já é um outro tipo de negociação, eles distribuem as músicas. Não é aquele tipo de contrato antigo, em que uma gravadora investe e você tem que devolver de alguma forma. A gente continua sendo uma banda independente e faz uma distribuição através de uma gravadora. É mais fácil. Agora o prazo está sendo interno. A brincadeira é a gente se propor a não ter controle. Então existe a possibilidade de terminar quando nós sentirmos que queremos. Tem uma hora em que a gente fala: "Já deu, já desgastou, vamos finalizar isso aqui?". Ou: "Vamos fazer mais um?". Ou mesmo: "Vamos terminar", e daqui a um tempão, depois ter lançado outra coisa, a gente abre esse projeto de novo e continua. Isso tudo é possibilidade ainda em aberto. Agora, neste momento, está pintando uma vontade de ter um fechamento para esse disco, para ver o que ele se torna. Depois, mesmo fechando, se nós quisermos mexer nisso, tudo é possível.

Por que vocês escolheram esse nome, 'Coração fantasma'? Escolher um nome para um projeto em aberto talvez seja diferente…

Foi (risos). Foi um desafio. Foi esse pensamento: "Como a gente vai dar nome para uma coisa que ainda não existe?". E, ao mesmo tempo, o quanto esse nome não pode representar justamente essa proposta? Acho que nós fomos muito por aí. O fantasma era muito essa brincadeira entre o que existe e o que não existe, o que está ali e o que ainda não está. E ao mesmo tempo, era uma coisa muito humana para a gente botar como fantasma, não é simplesmente como se fosse um disco fantasma. É também, mas é uma coisa humana. O coração vem muito por aí. E a gente juntou.

Hoje a gente vive um momento em que, apesar de ainda haver uma disparidade muito grande, porque a maioria dos compositores ainda é homem, existem mas compositoras independentes em evidência na cena independente do que há alguns anos. Como você se sente sendo compositora neste momento?

Eu não posso falar de como era antes, só do que eu vivi… Eu só vivo isso agora, e sinto que as compositoras estão mais em evidência, sim — as independentes, principalmente — e acho isso bom, claro. Acho que isso tem ver também com as discussões sobre as questões das mulheres, o feminismo. Acaba se refletindo na música também. Ainda falta muito, mas a gente já vê algum avanço. Porque não é que as compositoras não existissem, mas muitas vezes não notavam que ela estava lá. É como se eu estivesse na banda e fosse tratada como um bibelô, em vez que participar do processo de criação, e não levassem em conta as minhas opiniões. Nas entrevistas, muitas vezes ainda tem isso: quando perguntam sobre composição, falam com os homens, e quando querem saber de figurino perguntam para mim. Tem muita coisa assim. Mas dá para ver um avanço, sim, até nos festivais, que escalam mais mulheres. E existem festivais contratam toda a equipe técnica de mulheres, o que é ainda mais difícil do que na música em si, e de propósito. Isso tudo tem que ser um esforço consciente para conseguir avançar em algo que está muito defasado. A melhora dá para ver, principalmente da consciência de que isso é uma questão. Como resolver isso ainda temos que estudar, mas pelo menos a compreensão de que existe um gap, uma lacuna.

Hoje em dia os artistas, se quiserem, têm contato direto com os fãs, receber o feedback direto do público em tempo real pelas redes. Acontece de mulheres que também são da música, que são iniciantes te procurarem para falarem que você inspirou elas?

Isso acontece não só comigo, como todas as mulheres que estão na música. Isso é a grande questão da visibilidade e da representatividade. É uma coisa que muda. Claro, se eu estou começando na música e eu vejo uma pessoa — claro, estamos no mercado independente, é uma coisa pequena, né? Mas eu vejo um exemplo, eu vejo alguém que me representa e que se apresenta como uma possibilidade real, isso faz uma diferença colossal para a cabeça da pessoa, para a sociedade. Naturalmente, acontece em show, acontece às vezes em mensagem. E é bom, né? Eu ainda sinto falta de ser representada em coisas que eu não me enxergo lá. Eu vi muito isso agora, com o lance da Fernanda Young, que foi uma perda horrível, muito do nada. Vi uma quantidade grande de pessoas colocando justamente isso: de alguma forma, pela primeira vez nós vimos a figura de uma mulher forte num meio extremamente masculino. Uma roteirista bem-sucedida, e ao mesmo tempo do jeito dela, assumindo as coisas dela, a forma de fazer dela sem pedir desculpas. Isso tudo inspira muita gente. Eu tenho amigas que são roteiristas e vi elas falando sobre isso, como a descoberta de alguém ali te motiva a fazer aquilo de fato. Senão a gente desanima mesmo.

E essa valorização do trabalho das mulheres agora deve criar um ambiente que até nos backstages da vida você encontra outras mulheres, né? Sinto que poucos atrás não era assim, o próprio line up dos eventos não tinha essa quantidade de mulheres…

Não tinha. E o que é bacana é que o público mesmo está cobrando isso. E está notando, e está reparando, e está atento. E a possibilidade dessas mulheres enfim se encontrarem e se esbarrarem, poderem compartilhar as experiências, isso é tremendo, faz muita diferença.

Voltando ainda para a história do disco: apesar de ele ainda estar em aberto, você sente que teve um conceito que norteou o trabalho? A essa altura, vocês entendem qual é o tema ou clima do disco?

Eu acho que, para ter a noção completa, a gente tem que esperar ele fechar. Vamos conseguir ter a perspectiva e distanciamento para te dar uma resposta melhor: "Acho que o conceito acabou perpassando isso, isso e isso." O que acontece enquanto nós estamos no processo criativo — que aconteceria também se esse processo não estivesse sendo público, exposto, se estivesse sendo só entre nós e a gente fosse gravar logo depois — é você ir reparando nas coincidências, ir notando como as coisas vão se interferindo e se conectando. Toda vez que estamos compondo, começamos a notar essas semelhanças e essas coisas que vão costurando. E isso é divertido: a gente está fazendo a música e, quando vai chegando mais para o final, fala: "Olha, como isso na verdade, seja musicalmente, seja na letra, já estava ali antes e isso aqui está sendo uma evolução?".

No outro disco ('Atlas', 2016) vocês lançaram um livro. Eu vi vocês falando que têm o desejo de lançar algum objeto, alguma outra coisa física com esse disco que seja complementar de alguma forma. Vocês já têm alguma ideia?

A gente já teve algumas conversas sobre o que poderia ser essa materialização do disco (risos). Mas não tem nada fechado. Até porque depende muito de como isso se dá, em que momento vamos fechar isso, deve ser mais para o começo do ano que vem. E aí, a partir de então, vamos poder, com conteúdo, pensar em como transformar isso em forma. Gostamos de trabalhar com símbolos. O livro já foi um passo inicial, agora eu acho que a gente quer ir um pouco mais radicalmente para um lado de… Peraí: o livro foi como se fosse uma sequência lógica do que seria um encarte de disco. Agora eu me pergunto mais: "Precisa ter alguma relação com o que a gente entendia como disco?". Eu acho que não, eu acho que pode ser qualquer coisa. Só que tem que se construir isso baseado no conteúdo que aquilo propõe. A discussão agora está sendo essa: "Para onde vamos? Que tipo de forma conseguimos linkar e relacionar com esse conteúdo e que pode ser ao mesmo tempo interessante, um objeto, alguma coisa que para a gente faça sentido e dê um entusiasmo de fazer?". Porque a gente precisa se empolgar: "Eu queria ter isso. Isso seria uma coisa louca e interessante e diferente." A gente fica sempre pirando nas coisas (risos).

Para a Baleia, a música precisa dialogar com outros tipos de arte? Vocês têm esse anseio?

Eu acho que inevitavelmente esse diálogo acontece. O quanto é possível caminhar por essas outras áreas vai muito também das possibilidades concretas de fazer. É claro que eu acho que imagem e músicas estão juntas. Eu ouço uma música, eu visualizo. Independentemente do que seja. Então, a minha vontade — e a vontade da banda, com certeza — seria poder trabalhar isso ao máximo, brincar com isso. Só que é claro que, de novo, a gente está num mercado independente, então não tem nem recurso financeiro para fazer tudo que gostaria de fazer. Ficamos superfrustrados, tipo: "Nossa, eu queria poder fazer um vídeo", "Queria poder fazer uma instalação", "Queria poder usar o show como não só um palco para estarem músicos com uma caixa com som saindo, mas brincar com tudo que é possível, fazer 3D, e matéria e luz e cor." A gente tem muito interesse, o que freia é até onde a gente consegue ir dentro dos limites dos nossos recursos. Por isso que é sempre um jogo difícil. Para toda banda independente, né?  É difícil pesar isso do investimento.

Vai lá:
Baleia
Quando: Sexta, 30 de agosto, às 21h
Onde: Casa Julieta de Serpa. JClub. Praia do Flamengo, 340 – Flamengo
Quanto: R$ 30 (meia-entrada) e R$ 60

Sobre a autora

Kamille Viola é jornalista, com passagens e colaborações por veículos como O Dia, O Globo, O Estado de S. Paulo, Billboard Brasil, Bizz e Canal Futura, entre outros. Nascida e criada no Rio, graças ao jornalismo já andou pelos mais diversos cantos da cidade.

Sobre o blog

Do pé-sujo mais tradicional ao mais novo (e interessante) restaurante moderninho, do melhor show da semana à festa mais comentada, este blog busca fazer jus à principal paixão do carioca: a rua.

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