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'Está muito difícil ser progressista no Brasil', diz Clarice Falcão

Kamille Viola

19/07/2019 15h00

Clarice Falcão lança seu terceiro disco, 'Tem conserto'. Foto: divulgação/Pedro Pinho

Depois de passar por Juiz de Fora (MG) e São Paulo, Clarice Falcão apresenta pela primeira vez no Rio, no Circo Voador, o show de seu terceiro disco, "Tem conserto". Desde o primeiro single lançado por ela, "Minha cabeça", chamou a atenção o conteúdo do trabalho, que gira em torno de temas como ansiedade e depressão, e tem um tom bastante confessional. "Nesse disco eu quis fazer uma coisa mais sincera mesmo, menos 'ah, é uma história', exagerando a ponto de me distanciar. Até por causa do assunto mesmo, merecia uma forma de falar mais honesta", explica a cantora e compositora.

Ela conta que o retorno dos fãs a respeito do trabalho é algo que a tem deixado muito feliz. "Não só muito bom de saber que eu consegui fazer aquela pessoa se sentir representada em algum lugar, mas eu também não me sinto tão sozinha", analisa ela. "Quando tem gente falando isso, dá essa sensação boa de: 'Caramba, alguém entendeu.' É isso que a gente quer no fundo quando faz alguma coisa de arte, é se comunicar, né?", admite Clarice.

Em conversa com o Rio Adentro, ela falou sobre seu processo de composição, o tema do álbum e ser artista no Brasil, a visibilidade das mulheres no país hoje, entre outros temas.

Esse disco chamou bastante atenção por ter uma vibe diferente dos seus trabalhos anteriores. Primeiro, por ser um trabalho mais eletrônico. Como foi o processo de composição para ele, e como você foi chegando na música eletrônica?

Há alguns anos já, uns três, eu comecei a me encantar pelo universo da música eletrônica. Eu já gostava de pop eletrônico, escutava umas coisas, mas puxando mais para o pop, Postal Service, para o independente. Mas eu comecei realmente a ficar meio fascinada pelo universo da música eletrônica mesmo. E, conforme eu fui compondo as músicas e eu comecei a entender o tema do disco mais ou menos, o conteúdo, eu comecei a achar que ia ser um casamento bonito. Quando eu vi que ia ser um álbum muito pessoal, muito direto, eu pensei que não fazia sentido cantar com o violão, eu achava que era um pouco chover no molhado, sabe? Achei que falar sobre assuntos como angústia ou depressão, coisas assim, com uma roupagem eletrônica ia ficar muito mais interessante, ia ter um contraste mais interessante mesmo.

E isso é outra coisa que está se falando muito do seu disco. Porque, por mais que você tivesse músicas com letras tristes, sempre tinha uma coisa irônica, um humor ácido. Por que dessa vez você resolveu falar diretamente, se despir de uma certa forma?

Eu acho que vem, em algum lugar, de uma maturidade, talvez. Pelo menos de uma organização mental. Eu estou chegando nos 30 agora, acho que consigo ver mais claramente as coisas pelas quais eu passei e estou passando do que quando eu tinha 20 e compus as primeiras músicas. Eu sempre gostei muito de escrever, então as minhas músicas sempre foram muito focadas em letra, acho que elas chegavam a ser quase narrativas. Tinha muito de mim, tinha muito das minhas experiências, mas eu narrativizava muito. E eu acho que nesse disco eu quis fazer uma coisa mais sincera mesmo, menos "ah, é uma história", exagerando a ponto de me distanciar. Até por causa do assunto mesmo, merecia uma forma de falar mais honesta.

E você acha que ser artista interfere nessa questão da sua depressão, da ansiedade? A vida que você leva ajuda, piora?

Ah, eu acho que ajuda e piora (risos). Acho que ambos. Por um lado, ter um lugar para você despejar, não sei se é essa a palavra, mas você consegue canalizar um pouco um sentimento que eu não saberia onde colocar se eu não pudesse escrever uma música, se eu não pudesse depois cantar e ouvir as pessoas cantando de volta, dá uma sensação de "caramba, não estou sozinha"… É uma catarse. Ajuda nesse sentido. Mas é uma vida também que tem muita pressão, muita exposição e é muito desregrada, é mais difícil de você manter uma rotina, coisas que a gente sabe que são importantes para a gente manter a sanidade. Acho que tem os dois lados.

E como foi o processo de composição? Você foi fazendo as letras ao longo do tempo e aí, quando se deu conta, tinha um monte de letras que giravam em torno do tema?

Pois é. Quando eu compus as primeiras três, quatro músicas e vi que meio que iam girar sobre esse tema, comecei a visualizar o disco. Eu sempre gostei muito de discos que têm um conceito definido. Eu lembro que o primeiro álbum que me encantou foi o '69 Love Songs', do Magnetic Fields, que é um disco-conceito. É um álbum triplo com 69 canções de amor. E eu falei: "Caramba, é lindo isso!". E é doido, porque hoje em dia, com playlist, não sei o quê, o álbum até perdeu um pouco a força como uma coisa inteira. Mas, ainda assim, me fascina. E aí quando eu vi que (o meu disco) era sobre isso, eu falei: "Cara, esse é o momento, acho que vou fazer um disco sobre ansiedade e depressão." Eu queria até que ele tivesse essa dualidade sonora também, de ter músicas muito para cima e outras mais para baixo… Ser um disco de picos. E acho que a gente conseguiu um pouco fazer isso. A segunda parte dele é muito dançante, a primeira parte é mais para baixo. Eu tinha essas músicas, falei com o Lucas de Paiva, que produziu comigo o disco, e a gente começou. Aí no processo, eu fiz as outras. Foi muito diferente. Das outras vezes, eu cheguei com as músicas já prontas, e a gente tinha, sei lá, duas semanas para fazer o álbum. Como (dessa vez) não tinha prazo, a gente foi compondo em cima de um beat que a gente fazia. Eu olhei o disco, como ele estava, e falei: "Pô, está faltando uma música assim, falta uma música mais leve." Aí eu fiz "Dia D". "Falta uma música de alguma forma mais otimista." Aí eu fiz "Sem conserto", foi a última do disco que eu fiz. Ele foi sendo montado aos poucos, diferentemente das outras vezes.

E você compôs essas músicas no violão, você compõe nele?

Não. Até a primeira versão de "Só + 6", talvez seja a única do disco que eu tenha feito no violão. Depois eu recompus ela em cima de uma base que a gente fez. Eu fiz a maioria das músicas no piano, também foi outra diferença, eu acho que eu já queria fazer algo diferente mesmo.

Eu ia perguntar se você tinha composto com algum software.

Eu tenho um teclado, na verdade. Em alguns casos, eu compus por cima de uma base que a gente fez na hora.

Eu ia mesmo tocar nesse assunto do álbum que você mencionou. Eu acho que parece ser um momento de opostos: ao mesmo tempo em que o single está superforte, tem muita gente fazendo álbum com conceito. Isso é curioso. É uma resistência.

Acho resistência, eu acho muito bonito. Eu gosto muito de ouvir um disco do começo ao fim e tentar entender por que essa ordem, por que essas músicas, começa onde e termina onde…

E esse tema do seu disco com certeza toca muita gente, muita gente se identifica. Acho que a depressão é uma doença muito comum hoje. Como tem sido com os fãs? Porque a internet permite um feedback direto. Você tem recebido mensagens de gente contando histórias?

Super. Especialmente o primeiro single que eu lancei, "Minha cabeça", que falava de ansiedade e tal, nossa, algumas pessoas vieram falar comigo e comentavam. No próprio clipe, na seção de comentários, tem muita gente falando: "Pô, é exatamente o que eu sinto quando estou numa crise de ansiedade!". E foi muito bom. Não só muito bom de saber que eu consegui fazer aquela pessoa se sentir representada em algum lugar, mas eu também não me sinto tão sozinha. Porque quando, quando eu compus essa música, tinha um certo medo de lançar a faixa e ninguém entender. E você descobrir: "Caramba, só eu que passava por isso, então." Sabe quando você conta uma história num grupo e diz: "Vocês também nãnãnãnã?", e aí todo mundo: "Não, cara, acho que só você mesmo…", e dá uma vergonha? Então quando tem gente falando isso dá essa sensação boa de: "Caramba, alguém entendeu." É isso que a gente quer no fundo quando faz alguma coisa de arte, é se comunicar, né?

Eu estava falando que a depressão parece ser uma coisa comum hoje. A gente tem ouvido muito falar sobre isso, sobre casos de suicídio. Você acha que a vida hoje contribui para adoecer as pessoas? Ou o Brasil especificamente?

É difícil dizer, porque eu não sou nem um pouco especialista. Eu falo muito pela minha experiência. Eu não sei, sabia? O meu avô, por caso, se suicidou há muito tempo, mais de 30 anos atrás. Nessa época, as pessoas já passavam por essas coisas. E não eram tão diagnosticadas. Acho que ele não tinha o acesso à informação que a gente tem. Por outro lado, com certeza, a vida de hoje em dia é muito… O acesso à informação… É fogo, porque é a mesma resposta da outra pergunta, que é: piora, mas  também ajuda. Eu penso que no fim das contas a gente tem esses dois lados nessa vida contemporânea. Também existe, cada vez mais, uma conscientização de que essa doença existe, e que precisa ser tratada etc. A gente ainda está muito do que devia ser. Acho que ainda é um tabu muito grande, mas a gente chegou num ponto que, se você procura tratamento, as pessoas sabem lidar com você muito melhor. Então vejo que existem esses dois lados.

Eu vi você falando que o Brasil te deixava mais triste. E a gente está vivendo uma fase complicada para ser artista no Brasil, com ataques… Como você se sente neste momento, como uma artista de várias áreas, inclusive?

Total. Eu acho que está muito triste. Eu, honestamente, acho que estaria deprimida mesmo sem ser artista. Pelo menos os meus amigos que não são estão na mesma situação. Hoje em dia, você ser uma pessoa progressista, ser do espectro LGBTQ+, você ser negro, você ser de uma classe mais baixa, não ser um banqueiro, não ser de uma grande empresa — está difícil para toda essa galera. Mas, com certeza, está tendo um desmonte da cultura e ataques aos artistas. Mas tenho parentes que são professores de escola que estão deprimidíssimos. Conheço gente da Biologia que está deprimidíssima. Está difícil mesmo.

Você falou desses grupos que estão sofrendo mais, e eu pensei também nas mulheres. É uma coisa contraditória, porque, ao mesmo tempo que a gente viveu avanços, a gente está vendo tentativas de retirada de direitos. 

De desfazer esses avanços todos.

Mas, ao mesmo tempo, estamos vendo um monte de discussões sobre a mulher, sobre nós, que não tínhamos há, sei lá, cinco anos. O debate está bem grande e na música a gente está tendo espaço para as compositoras. Apesar de você, por exemplo, já ter uma carreira de alguns anos, hoje a gente vê muitas tendo espaço, mesmo artistas independentes. Como você se sente enquanto mulher e sendo artista, na música, que é um meio historicamente dominado por homens, principalmente a composição, mas também no seu trabalho em geral, já que você realiza outras coisas? Como você vê o espaço da mulher hoje e essas discussões?

Ah, eu tenho tido a oportunidade e o privilégio de trabalhar junto e ver mulheres muito incríveis brilhando. Porque sempre existiram, mas acho que você tem toda razão, está um momento que, se você ver, os grandes destaques da música independente recente… A Letícia Novaes (do projeto Letrux) é uma mulher fortíssima, e que inclusive está aí há muito tempo, fazendo coisas com banda etc. e que só agora as pessoas de repente estão vendo: "Caramba! Nossa! Olha essa novidade!". Não é novidade nenhuma. Quando eu tinha 20 anos, a Letícia já estava fazendo show. E, como atriz, acabei de gravar um seriado com a Tatá Werneck ('Shippados', produzida para a plataforma Globoplay), que, na minha opinião, é um dos maiores comediantes — não uma das, um dos — do país. Acho que talvez ela seja o maior comediante do país. E que também passou muito tempo na MTV, "ah, ela é engraçada para uma mulher". Eu fico muito feliz. A gente está num momento em que as mulheres talentosas estão tendo o que sempre era ter sido delas de direito, que é espaço e oportunidade. E as pessoas estão finalmente levando a sério.

Já que você citou a Tatá e do seu trabalho como a atriz, em 'Shippados' você entrou em várias coisas que são tabu. Você fica nua, por exemplo, que foi uma novidade para você — porque, por mais que no Porta dos Fundos você já tivesse ficado, é diferente. Como foi?

Foi difícil. Mas grande parte do que me seduziu no papel foi não só o desafio, mas esse posicionamento de estar na Globo, mostrando o corpo de uma forma diferente — que é não sexual, eu não estou pelada porque eu vou transar com ninguém, eu estou pelada porque meu corpo é assim e a personagem gosta, se sente mais livre dessa forma. Eu acho que foi um dos grandes atrativos do personagem para mim. Aí obviamente a mecânica disso é complicada, você ficar pelada na frente de um set inteiro de filmagem, só de tapa-sexo. Mas tem uma hora em que você meio que se acostuma, aí é quando a mágica acontece, que você começa a entender o seu corpo de outra forma. Depois da experiência, eu vejo meu corpo com muito mais liberdade, com menos vergonha. E é doido, porque eu já tive problemas com meu corpo, mesmo não tendo um completamente fora do padrão. Mas ainda assim eu me sentia fora do padrão. Acho que, depois de um tempo pelada na frente de um monte de gente, você começa a entender que esse padrão é… Enfim. Eu aprendi muito.

Eu vi que para a personagem você resolveu parar de depilar o sovaco. Foi algo que foi para o papel, mas você trouxe para a sua vida, né? Como foi?

Quando eu li sobre o personagem, logo vi que não faria sentido ela raspar o sovaco. Ela tinha uma relação muito livre, muito tranquila com o corpo dela, não combinava. Aí eu resolvi parar, antes de filmar, e amei. Inclusive fiquei muito mais tempo, acho que raspei só semana passada. Mas eu continuei, achei uma liberdade muito grande. E comecei a ver as mulheres que não depilam… Eu acho muito bonito. Até porque traz uma coisa de uma personalidade forte. Eu recebi muito olhar de "hum" porque eu estava com o sovaco peludo. Você fala assim: "Caramba, você tem que ter uma segurança e uma personalidade muito forte para você encarar." Então eu comecei a achar as mulheres mais atraentes quando elas não depilam.

Você comentou que está chegando perto dos 30. Eu já vi você dizendo que não acredita mais sabe tudo. Você está no retorno de Saturno. Independentemente de você acreditar nele ou não, chegar aos 30 muitas vezes é um marco. Como você se sente quanto ao seu amadurecimento e em relação a estar perto dessa idade?

Ah, eu acho que o próprio disco é muito um álbum de retorno de Saturno, sabe (risos)? É um disco meio olhando para o que aconteceu, olhando para mim. É muito reflexivo. Acho que nos dois primeiros eu estava sempre me botando muito em relação ao outro: "Ah, eu amo você", ou "Não, odeio você". E acho que esse é muito como eu estou me sentindo, independentemente do outro. Acho que o principal sintoma do meu retorno de Saturno foi muito esse disco (risos), ele é muito sintomático de um fechamento de ciclo e um começo de ciclo também, porque não existe um sem o outro.

Não acha que isso também ter a ver com um movimento de nós mulheres mesmas, de o outro parar de ser referencial? Eu vejo isso.

Total. Eu passei muito por isso. O primeiro disco era muito de amor, de obsessão e tal. Era zoando, era fazendo piada, e dizendo: "Nossa, como a gente é idiota quando está apaixonada." Mas era um disco de amor? E o segundo era meio empoderado, mas ainda em relação a alguém: "Ah, eu estou melhor sem você", "Eu não ligo para você", "Não sou sua". E que é importante, sim, é um momento de descoberta de independência. Mas esse de alguma forma, apesar de ele ser mais triste, acho que talvez seja o mais "empoderado", ele é muito sobre, é um disco de autorreflexão, de autoconhecimento. É um álbum em que eu não estou pensando em mim mesma em relação a nada, eu estou pensando em mim mesma, ponto.

E depois desse movimento de pensar em si mesma e de todas as discussões que a gente tem tido sobre o feminino, sobre ser mulher, você acha que a forma de fazer humor fica a mesma. Por exemplo, sempre teve uma coisa de humor autodepreciativo, que hoje já tem quem bote em questão. Como 'Nanette', que fala dele em relação a minorias.

Eu acho que o humor autodepreciativo, pelo menos no meu caso, o que eu sinto é que eu parei de exagerar as coisas para me botar para baixo, mas eu acho muito bom também, pelo menos para mim, usar o humor para falar a verdade. Não quero ter que esconder as minhas inseguranças, como se eu fingisse que eu tenho as respostas quando eu não tenho. O que eu tenho fazer — e eu entendo totalmente a parada do humor autodepreciativo etc. —  é ver o quanto tem de verdade. Quando eu falo uma coisa como: "Estou muito nervosa por causa disso", ou "Acho que não sei fazer isso bem" e é verdade, eu me sinto tranquila. Porque eu não estou me diminuindo, eu só estou sendo honesta. Acho que, no fim das contas, é importante a honestidade nesse sentido. Especialmente porque, às vezes, a gente pode se sentir muito sozinha, achando que só a gente está passando por isso, só a gente que se sente insegura com tal coisa, só a gente que se acha uma merda, e não é. Então eu acho que a sinceridade é boa também, nesse sentido.

Vai lá:
Clarice Falcão – 'Tem conserto'
Quando: Sábado, 20 de julho, às 22h (abertura dos portões)
Onde: Circo Voador. Rua dos Arcos, s/nº – Lapa
Quanto: R$ 50 (meia-entrada ou com 1kg de alimento) a R$ 120 (2º lote, inteira)

Sobre a autora

Kamille Viola é jornalista, com passagens e colaborações por veículos como O Dia, O Globo, O Estado de S. Paulo, Billboard Brasil, Bizz e Canal Futura, entre outros. Nascida e criada no Rio, graças ao jornalismo já andou pelos mais diversos cantos da cidade.

Sobre o blog

Do pé-sujo mais tradicional ao mais novo (e interessante) restaurante moderninho, do melhor show da semana à festa mais comentada, este blog busca fazer jus à principal paixão do carioca: a rua.

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