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'É essencial que eu diga que sou lésbica', diz Maria Beraldo

Kamille Viola

25/05/2019 13h58

Maria Beraldo abre o show do Terno. Foto: divulgação/José de Holanda

Maria Beraldo já era conhecida pelo trabalho como instrumentista e arranjadora, tendo trabalhado com nomes do quilate de Arrigo Barnabé e Elza Soares. Também já integrava as bandas Quartabê e Bolerinho. Mas ainda faltava uma peça em seu quebra-cabeça musical e ela começou a compor — a única incursão como compositora tinha sido aos 18 anos, quando criou um choro. O canto já tinha sido despertado ao fazer parte da banda que acompanhava Arrigo no espetáculo 'Clara Crocodilo', que revisitava o trabalho mais marcante do artista, de 1980. Assim, pouco a pouco foi se delineando o disco 'Cavala', estreia solo da cantora e instrumentista, um show-de-uma-mulher-só que ela apresenta hoje, na abertura da apresentação da banda O Terno no Circo Voador.

Com altas doses de experimentalismo, o trabalho levou Maria a festivais Brasil afora e à sua primeira turnê no exterior, em Portugal. Sua condição de mulher lésbica permeia todo seu trabalho, o que, para ela, é fundalmental. "Enquanto eu não falo, eu estou escondendo, eu estou de alguma maneira sendo condescendente com a omissão da homossexualidade. Para mim é essencial que eu diga. E, ao mesmo tempo, eu só estou falando coisas da minha vida", analisa ela. "Tem muita gente que acha que, ou por causa desse trabalho, ou por causa do jeito como eu me visto, que eu eu procuro um jeito de ser diferente ou algo assim. Mas na verdade eu só quero ter minha vida normal. O problema é que para isso a gente precisa dar um grito muito mais forte do que uma pessoa que está numa situação de não opressão. Mas na verdade as pessoas homossexuais só querem ter a vidinha delas, sem correr os riscos que a gente corre", explica.

Como foram suas experiências no Rio, apresentando o seu trabalho solo?

Eu apresentei duas vezes o 'Cavala' aí ano passado. Primeiro, eu fiz o lançamento do meu disco aí no Rio dentro do Oi Futuro, num projeto que eles têm de shows. E era um lugar superpequeno, cabia pouca gente. Foi íntimo, foi uma coisa bem pequena, para poucas pessoas que estavam querendo muito ver e foi muito legal. Foi incrível. E aí depois eu toquei no festival WOW (Mulheres do Mundo), na Praça Mauá, e foi o contrário dessa vez no oi futuro, porque lá era imenso, na rua. Um foi dentro e com pouca gente e o outro foi na rua e com muita gente. Então as duas vezes foram muito legais e muito diferentes uma da outra. Sinto que o Rio, depois de São Paulo, é onde o meu público mais está. Tem muita gente que conhece o trabalho aí, também tenho muitos conhecidos músicos aí, enfim, tem uma ponte forte Rio-São Paulo forte. Eu sempre me sinto muito bem acolhida e converso muito também com meu público do Rio pelas redes, então é sempre bom tocar aí.

O seu show está sendo bastante requisitado: você se apresentou em diversos festivais pelo país. Acho que o 'Cavala' foi num crescente de popularidade e reconhecimento. Você concorda com isso? como foi esse movimento e como foi sendo para você lidar com isso?

Ah, eu acho que foi muito legal. O trabalho teve uma recepção muito boa, desde que eu lancei — agora vai fazer um ano, dia 30 de maio de 2018 foi quando eu lancei nas plataformas. Foi muita coisa, realmente intenso, numa crescente, toquei em muitos festivais pelo Brasil, festivais grandes. E o meu trabalho é bastante experimental, tem um pezinho na música pop, tem um pouco de música eletrônica, mas é muito experimental de maneira geral. E, ao mesmo tempo, eu acho que ele se conecta com o público através da canção mesmo, que é muito enraizada na canção brasileira, em autores que a gente está muito acostumado a ouvir. É uma alegria grande estar dentro de um circuito e estar crescendo dentro desse circuito, ainda que com uma música tão experimental. Nos festivais grandes em que eu estive, eu sinto que o meu trabalho é um pouco distinto dos outros, desses que têm um público grande. Ele tem um risco, uma coisa de música experimental mesmo, e eu fico muito feliz que o público esteja recebendo tão bem esse som nesses contextos, e acho que o público é muito aberto a todo tipo de música. Fiz muitos festivais, fiz o Molotov, WOW, Radioca, e agora em abril fui pra minha primeira turnê internacional com esse trabalho. Fiz cinco cidades em Portugal, fui muito bem recebida lá e fiz o lançamento do vinil lá, com um selo português que editar meu vinil lá, e agora está sendo aqui no Brasil. Acabou de sair, aliás. Tem muitas assim acontecendo. Esse trabalho está realmente crescendo e dando frutos muito legais. Estou muito feliz com a recepção das pessoas em geral.

Você já era uma pessoa conhecida no meio musical pelos seus colegas, porque você é arranjadora, instrumentista, só que fazer um disco solo eu imagino que seja um processo diferente, é você literalmente botando sua cara pra um trabalho. Como foi pra você? Como você se vê nesse novo lugar dentro da música?

Para mim fez muito sentido, foi uma transformação muito grande. Ainda que eu, de jeito nenhum tenha abandonado as minhas outras funções, acho que essa transformação em compositora e cantora, e uma pessoa que é frontwoman — na verdade mesmo sou só eu, inclusive —, mas esse nível de exposição que um trabalho solo exige, para mim fez muito sentido, porque acho que eu tinha coisas musicais, eu tinha muito a dizer. O meu desenvolvimento como musicista e instrumentista foi muito importante, mas acho que, quando eu comecei a compor canção, eu senti um salto, uma coisa que eu nunca tinha sentido antes. É um pouco "eu preciso disso". Talvez o meu lugar na música seja esse principalmente, o de compositora. Enfim, quando eu comecei a produzir esse trabalho, a primeira vez que eu fui encontrar o Tó (Brandileone, do 5 a Seco),  que produziu o disco comigo, é uma coprodução nossa, depois eu senti uma coisa que eu nunca tinha sentido. Eu acho que essa transformação fez muito bem para mim e aí eu fui entendendo mais o meu lugar em cada trabalho, e tudo foi se encaixando muito bem com essa mudança mesmo. Continuo tendo a Quartabê e o Bolerinho, que são meus grupos, totalmente horizontais, onde todo mundo é compositor e compositora, todo mundo é arranjadora, todo mundo dá as ideias horizontalmente. Esses grupos são vitais para mim, em contraste com o trabalho em que eu sou a cabeça e eu tomo as decisões estéticas e todos os caminhos. Uma coisa complementa a outra, mas foi de suma importância eu tomar esse lugar. Fez muito sentido. Eu acho também que por muitas questões políticas. Nesse trabalho eu coloco a minha vida pessoal, exponho a minha vida pessoal por questões políticas. A vida de todas as pessoas é pública nesse lugar da sexualidade, e a gente é invadida desde criança, desde muito pequena. Então eu precisei dar um grito de liberdade mesmo e meio que tomar o lugar da minha figura e dizer quem eu sou. Porque o que a sociedade diz de mim, o que a sociedade lê de qualquer pessoa — principalmente de uma pessoa homossexual — não faz o menor sentido. Eu me sentia muito invadida por essa leitura, porque as pessoas olham para alguém, aquela pessoal é heterossexual e isso define muitas coisas da vida dela. Então eu precisei me colocar como mulher lésbica, mulher compositora, e esse passo foi a força-motriz de todo esse meu movimento de me colocar à frente da minha imagem, do que eu digo e do espaço do meu corpo. Meio que me apossar do espaço que o meu corpo tem no mundo. Esse trabalho tem essa importância. Por isso me fez e me faz tão bem.

Li uma entrevista em que você dizia que vinha compondo uns quatro anos antes de lançar o disco. Você sempre fez música? Como foi o processo de se descobrir compositora?

Eu tenho uma composição que eu fiz quando tinha 18 anos, que é um choro. Antes disso eu nunca tinha composto, depois disso também não. Foi com a minha vinda para São Paulo que isso começou a acontecer. Eu vim para cá para trabalhar com o Arrigo Barnabé. Estava terminando o meu mestrado na Unicamp e aí ele me ligou, eu vim. Entrei em contato com a metrópole, a cidade em si, que foi muito transformadora para mim. Porque eu nasci em Florianópolis e depois morei em Barão Geraldo, em Campinas, que são cidades pequenas e que têm uma estrutura social de cidade pequena mesmo. E aí vim para São Paulo, e isso foi uma mudança muito drástica na minha vida. E ninguém sabia quem eu era. Isso já foi uma coisa muito importante para mim, de não ter um background de família, de pode construir o que eu quisesse. Como um papel em branco, de alguma maneira. E aqui eu encontrei muita gente fazendo muita coisa que me tocou muito. Tanto o Arrigo Barnabé, o trabalho dele, que eu já conhecia, mas estar perto dele e viver aquele trabalho, tocar aquilo me transformou muito musicalmente. Ele me colocou para cantar aquelas coisas do "Clara Crocodilo", coisas difíceis, e fazendo já um exercício, experimentando pela primeira vez estar assim como cantora, uma coisa que eu nunca tinha experimentando. Foi muito transformador para mim, porque o nível de exposição que você tem é outro, o contato com o público. Para mim, foi muito diferente de quando eu só tocava clarinete. E toda a estrutura musical do Arrigo, e a relação dele com a cena — ele não é um músico, compositor, ele é um artista. O Arrigo é completo. Isso virou minha cabeça, e eu acho que São Paulo tem muito disso. É muito influenciado pelo Arrigo, pelo Itamar, todo o pessoal da Vanguarda Paulista. E também São Paulo são muitas cidades, eu conheci muito a galera do samba, do choro e o pessoal que vem do samba e que está fazendo uma outra coisa, o que para mim foi muito importante: poder não tocar as coisas como a regra dizia a princípio, você chegar numa roda de choro e tocar aquilo daquele jeito, como era. É mais um espaço para criação. A minha vinda me colocou em contato com muitos artistas e muitas artistas criadores. Conheci Iara Rennó, Rodrigo Campos, Romulo Fróes, Juçara Marçal, o Arrigo, a Mariá Portugal… muita gente daqui. E aí eu fui estudar canto com a Regina Machado, porque eu precisava me resolver melhor com o fato de estar cantando com o Arrigo, tanto tecnicamente como em outros sentidos, e ela me deu alguns discos para eu estudar, para eu encontrar um repertório que fazia sentido para eu cantar. E eu comecei a ouvir 'Joia', do Caetano, que eu já conhecia também, mas fiquei seis meses mergulhada nesse disco, só ouvindo isso. Enquanto eu estudava essas músicas, comecei a compor. E aí veio a primeira canção que eu compus, que foi mais ou menos nessa época, 2014. Foi "Da menor importância", que é uma música que eu fiz mergulhada no 'Joia'. Ela inclusive tem uma estrutura versa à melodia do 'Joia'. Eu acho que encontrei o meu lugar de criadora mesmo. Foi uma coisa de ir elaborando o meu lugar na música, isso de me tornar compositora. O que eu tenho hoje, o que eu sinto que faz sentido para mim, independentemente de eu estar como instrumentista, ou como cantora, ou como diretora musical, como arranjadora é que eu possa ter espaço para criar. O meu lugar é de criação, de invenção. E isso também está totalmente relacionado ao estudo. Estudar música de outras pessoas, mergulhar no trabalho de outras pessoas me dá material para eu transformar aquilo e acaba virando uma criação. No fundo, a invenção nunca vem de nenhum lugar. Não fui eu que inventei: eu estou só digerindo como eu vejo o mundo, o que eu escuto do mundo. Acho que é tudo muito coletivo, no final das contas. A gente vai se influenciando e se colaborando. A vida para São Paulo me deu esse clique de ver muita gente criando. Aqui muita gente compõe, tem muita compositora, é muito forte a canção, muito influenciada pelo Itamar, que outra pessoa também muito emblemática. Acho que tem muita gente aqui que me incentiva no processo de virar compositora.

Eu acho que a gente está num momento das compositoras no Brasil. O que você acha disso, talvez de estar existindo espaço para o trabalho das compositoras?

Acho que isso é vital. Sempre houve compositoras, desde o princípio. Desde que existe compositor existe compositora. As mulheres sempre escreveram, compuseram. Só que elas sempre foram reprimidas, claro, e muitas delas deixavam de fazer seus trabalhos artísticos porque tinham que fazer trabalhos domésticos, e isso não é uma coisa equilibrada. Tivemos mudanças, mas ainda não é. Não só a questão de trabalhos domésticos, mas toda a estrutura de gênero, como a gente já sabe, é muito desequilibrada. Acho que de uns anos para cá o Brasil começou a viver um momento político onde a gente estava começando a ter espaço para encontrar esse tipo de transformação. Acho que os governos de dez anos atrás estavam construindo um espaço social em que essas questões puderam começar a se modificar. Isso também é uma evolução que não tem volta. As compositoras estão ganhando espaço. Na verdade, elas precisam de muito ainda, é muito desproporcional. Os homens têm muito mais espaço que as mulheres no mercado. Enfim, acho que tem uma mudança social que já começa a acontecer um pouco no Brasil nos últimos anos e que agora estão tentando reprimir mais uma vez, mas existem transformações que perduram ao longo prazo. Isso é uma construção pela qual as mulheres, desde o princípio, começam a lutar, e a gente vai cada uma contribuindo um pouco. Por outro lado, eu acho que tem uma questão mercadológica também. O mercado da música de alguma maneira "comprou" (a ideia do) feminismo, ao mesmo tempo que ele não muda realmente as estruturas. Hoje se fala muito de mulheres na música, é um tema muito recorrente e muitas pautas de imprensa, enfim, o mercado está voltado para essa questão, porque o mundo está voltado para essa questão. Isso dá dinheiro também, isso é um produto. Acho que as mulheres, mais uma vez, estão sendo vendidas e também são um produto, ao passo em que elas continuam sem serem de fato valorizadas, sem que exista uma real transformação social no lugar da mulher. Isso é um assunto complexo, também. Mas acho que tem uma coisa mercadológica de vender e de falar de mulheres e de não mudar a estrutura. Ao mesmo tempo, tem muita mulher trabalhando para transformar essas estruturas de de fato, e ninguém vai nos segurar. São muitos movimentos acontecendo ao mesmo tempo. Que bom que no Brasil a gente está nesse momento de ter muitas compositoras em evidência, das cantoras não sejam mais necessariamente só intérpretes — não que seja menos, a intérprete pode ser tão criadora quanto a compositora —, mas as mulheres estão lutando por um lugar de abertura mesmo, onde elas possam desenvolver as funções que quiserem, um lugar de autonomia. A gente ainda passa por muitas dificuldades, mas, de alguma maneira, temos nos encontrado umas coisas as outras, e isso está, de uma forma muito lenta, talvez mudando mesmo. Espero que sim.  Eu tenho uma coisa na minha estrutura que é louca porque eu sempre convivi com mulheres. Eu aprendi a tocar com a minha mãe. Ela toca sax, flauta, é compositora, e ela morava nos anos 80 em São Paulo e tocava sax, o que era bem menos comum que hoje. Eu aprendi a tocar com ela, na escola de música dela em Florianópolis e, talvez por essa ser mulher e ter muitas professoras instrumentistas e compositoras, eu tenho um monte de amiga musicista desde criança. Eu sei que isso é uma exceção, mas é um privilégio eu ter crescido com um grupo de amigas instrumentistas.

Muitos profissionais são dominados por homens, eles são maioria. E a música não é diferente. Como é, apesar desse movimento de mudança que a gente está vendo, ainda ter que lidar com um meio que é permeado por machismo?

Eu acho que eu encontrei um lugar de força com relação a isso. Eu me sinto muito forte para encarar essas questões. E, ao mesmo tempo, eu estou rodeada de mulheres. A minha equipe de produção é só de mulheres, na minha banda Quartabê somos maioria, Bolerinho só tem mulher, no meu trabalho sou só eu no palco, então eu tenho o privilégio de trabalhar com poucos homens (risos). Uma coisa totalmente fora da média. Eu acho que a gente está encontrando um lugar de conscientização de todos os processos sociais — claro que cada um com as suas limitações, eu não sou uma pessoa que tenha supertempo para estudar, mas faço isso sempre que posso, troco muito com as mulheres à minha volta. Acho que a gente encontrou um lugar de força de de embate que é muito importante nas situações em que a gente se depara diretamente com uma pessoa machista, a gente consegue lidar com isso. Mas é claro que, as estruturas em si, a gente é muito oprimida por elas. Existem não sei quantos festivais e programações e premiações onde só homens ganham. Eles têm muito mais destaque. A minha posição é de enfrentamento disso e de tentar trabalhar cada vez mais só com mulheres. Eu já trabalho praticamente só com mulheres, manter isso e a gente se pensar como um exército mesmo, de ir encontrando e dominando espaços. Porque eu acho que é uma guerra, não existe paz nesse sentido. A relação entre opressor e oprimido não é de "vamos encontrar um caminho da paz", é um embate mesmo. Isso é uma coisa que me fortalece: encontrar as minhas semelhantes e a gente se apoiar para ganhar espaço. E isso tem acontecido, as mulheres estão muito juntas. Acho que estamos num momento muito legal nesse sentido.

As mulheres lésbicas não são novidade na música brasileira, obviamente, mas poucas vezes no passado essa questão da homossexualidade feminina foi explícita nas músicas, como é, por exemplo, no seu trabalho. Você fala muito abertamente. Você sente que isso também te aproxima de um público lésbico? Recebe o contato do público dizendo que sua música ajudou de alguma forma, ou que ele se identifica com ela? Com é a relação do seu público com esse fato de você tratar abertamente desse tema?

Ah, isso é fundamental. Muitas pessoas me escrevem, e eu acho que eu fui criando um público de mulheres. Não sei se elas são em maioria lésbicas ou não, mas isso é muito presente no meu show. Mesmo as que não são necessariamente lésbicas, mas ou são bissexuais, ou sentem a necessidade de poder… Eu acho que a luta lésbica é uma luta feminista por definição. Mesmo que você não seja lésbica, se você é feminista, essa luta é sua também. O fato de um relacionamento entre duas mulheres excluir um homem é o que é tão agressivo para a sociedade patriarcal. E isso está diretamente ligado à luta pelos nossos direitos, nossa independência, nossa autonomia. O meu público é 100% de mulheres lésbicas ou simpatizantes dessa causa. Acho que existem muitas mulheres que não necessariamente são lésbicas e que se tocam muito com tudo o que eu digo. Mas sim, muitas meninas lésbicas, mulheres de várias idades, me escrevem. Desde o começo do trabalho eu recebo muitas mensagens de gente agradecendo e às vezes perguntando coisas, pedindo conselhos, é engraçado isso (risos). Eu me sinto bem falando com essas pessoas, porque eu senti muita falta de uma figura que ocupasse um lugar como o que eu ocupo hoje, e que outras mulheres também ocupam, de dizer que são lésbicas. Porque, como você falou, sempre houve mulheres na música, óbvio, mas isso não era dito antes. Se você sabe de uma coisa e sabe que ela é omitida, você entende que aquilo é errado, não pode ser dito, que aquilo é proibido. Eu não tinha um espelho de uma mulher lésbica que tivesse uma vida normal, em que pudesse falar do relacionamento dela, que pudesse viver a vida dela sem restrições. Conheci muitos casais de mulheres que fingiam não ser casais, que fingiam não ser lésbicas. Isso foi muito difícil. Meu momento de dar essa volta por cima tem muito a ver com isso, porque é muito importante que a gente fale. Enquanto eu não falo, eu estou escondendo, eu estou de alguma maneira sendo condescendente com a omissão da homossexualidade. Para mim, é essencial que eu diga. E, ao mesmo tempo, eu só estou falando coisas da minha vida. Como a gente tem muita opressão, eu estou levantando uma bandeira com a minha música. Ao mesmo tempo, se a gente não tivesse essa opressão, seria igual a quando as pessoas heterossexuais falam da vida delas. Não tem uma coisa imperativa, de dizer "faça isso, você tem que entender, não sei o quê". Não, eu só falando… Sei lá, estou contando uma história de amor com uma mulher, aí tem outra música em que eu conto para os meus pais que eu sou lésbica. O que também é uma coisa que… O dia que a gente conseguir tirar essa etapa das nossas vidas vai ser uma glória, porque você ter que contar para cada pessoa do seu círculo que você é lésbica significa que até então todo mundo estava achando que você era hétero, né? Aí você vai lá e decepciona cada pessoa. Isso é uma coisa muito exaustiva emocionalmente, muito. Tem muita gente que acha que, ou por causa desse trabalho, ou por causa do jeito como eu me visto, que eu eu procuro um jeito de ser diferente ou algo assim. Mas na verdade eu só quero ter minha vida normal. O problema é que para isso a gente precisa dar um grito muito mais forte do que uma pessoa que está numa situação de não opressão. Mas na verdade as pessoas homossexuais só querem ter a vidinha delas, sem correr os riscos que a gente corre.

Você costuma receber mensagem de hater?

Não costumo, mas já aconteceu, sim. Volta e meia acontece, mas não é uma coisa muito frequente, não. Eu acho que meu público já tem meio que um recorte e, ao mesmo tempo, eu não tenho uma projeção tão grande assim a ponto de rodar muito, ficar aparecendo. Eu acho que eu estou num circuito onde as pessoas não são muito homofóbicas. Mas sim de vez em quando acontece. Aí eu tento ser didática e, se a pessoa é muito agressiva, eu bloqueio, coisas assim.

No seu dia a dia, você passa por situações homofóbicas?

Com certeza. Mesmo porque, acho que pelo jeito como eu me visto, o corte de cabelo, o fato de eu não me depilar, tudo isso configura um lugar social diferente de um padrão. Pelo jeito como eu me visto, as pessoas sabem que eu sou sapatão. Poderia não ser? Poderia. Mas existem códigos, né? E inclusive isso é uma coisa que tem a ver com eu me sentir bem com a minha imagem, porque eu tenho orgulho de ser sapatona. Claro que eu sinto, mas faz tempo que ninguém fala comigo ou me agride. Eu acho que também, ao mesmo tempo, quando eu comecei a assumir mais esse visual, eu me protegi. Não sei se só o visual, mas a partir do lançamento do disco, quando eu passei a me expor mais, eu fui encontrando lugares de proteção. Na época das eleições, até no começo desse ano, quando o Bolsonaro fez aquele primeiro discurso dele, falando que ia acabar com "ideologia de gênero" e todas esses coisas, eu fiquei e fico muito insegura. Eu não tenho a tranquilidade de andar com a minha namorada de mão dada na rua como as pessoas heterossexuais tem. Isso é homofobia em um de seus estados superviolentos, né? Porque eu vivo a minha vida com medo, isso é um fato. Claro que eu fui encontrando meu jeito de proteger e de encontrar minha segurança. mas é um fato que as pessoas homossexuais vivem com medo. Então sim, homofobia faz parte do meu dia a dia, estou sempre em contato com isso. Às vezes eu evitar de me referir à minha namorada como minha namorada, isso também é uma coisa muito homofóbica na estrutura social.

Vai fazer um ano do disco. Você já anda compondo coisas novas, já planeja um trabalho novo ou ainda está vivendo o 'Cavala' e não pensando nisso?

É um pouco de cada coisa, na verdade. Eu não tenho composto muito, porque não tenho tido tempo. Fiz uma música, na verdade, desde o lançamento (risos). Acho que tem uma só inteira que eu compus, que inclusive levei para o meu ensaio com a Laura (Diaz), do Teto Preto, é uma música que a gente fez no show que a gente fez na Virada Cultural, talvez a gente lance alguma coisa juntos, com essa próxima composição. Fiz algumas parcerias também, fiz uma música com o Rodrigo Campos. Tem algumas coisinhas pontuais. Ao mesmo tempo que eu não estou pensando num disco para este ano, por exemplo, eu sei que eu já me transformei bastante, com relação a tudo isso que eu tenho vivido, musicalmente e pessoalmente, e em breve devo mergulhar, sim, num trabalho novo. Ao mesmo tempo, tenho feito muitas coisas. Fiz a trilha de uma peça, 'O fim', agora vou fazer a direção musical de uma outra, com a Mariá Portugal (também da Quartabê), as duas do Felipe Hirsch, e essas me nutrem muito, são um pouco lugares de experimentação, para testar sonoridades. E é isso, pegando material de vários lugares, assim que vai surgindo o meu trabalho. Eu estou elaborando, sim, um novo disco, não de uma maneira objetiva, mas através de tudo que eu tenho vivido, que é muito plural.

Vai lá:
O Terno + Maria Beraldo
Quando: Sábado, 25 de maio, às 22h (abertura dos portões)
Onde: Circo Voador. Rua dos Arcos, s/nº – Lapa
Quanto: R$ 50 (meia-entrada com 1kg de alimento) a R$ 100

Sobre a autora

Kamille Viola é jornalista, com passagens e colaborações por veículos como O Dia, O Globo, O Estado de S. Paulo, Billboard Brasil, Bizz e Canal Futura, entre outros. Nascida e criada no Rio, graças ao jornalismo já andou pelos mais diversos cantos da cidade.

Sobre o blog

Do pé-sujo mais tradicional ao mais novo (e interessante) restaurante moderninho, do melhor show da semana à festa mais comentada, este blog busca fazer jus à principal paixão do carioca: a rua.

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