'O brasileiro não se reconhece enquanto negro', diz Malía
Ela ficou conhecida nas redes sociais, onde postava vídeos em que cantava versões de músicas de outros artistas. Logo eles foram fazendo sucesso e chamaram atenção da Universal, que contratou a artista. Isadora Machado trocou o nome de batismo por Malía, de inspiração africana, e deu início a uma trajetória que está em plena ascensão.
Embora cante e componha desde os 14 anos (ela está com 20), a jovem nascida na Cidade de Deus demorou para acreditar que pudesse seguir carreira na música. A decisão veio quando fez o Enem e não conseguia escolher uma faculdade — não se identificava com nada. Começou a postar os vídeos e foi tendo sinais de que deveria enveredar por sua grande paixão.
Feliz em se sentir parte de uma época em que diversas cantoras e compositoras negras estão destaque, ela diz que ainda falta naturalizar a presença do negro em muitos ambientes. "Acho que temos um bom começo, mas precisamos começar a nos aprofundar. É muito fácil a gente se perder pelo caminho e parar na parte estética, porque estamos vendo corpos negros estampados no outdoor. Mas eu quero saber: quantas pessoas negras estão espaço de desenvolvimento da publicidade?", manda.
Malía se apresenta neste sábado no Verão do Spanta, na Marina da Glória, dividindo o dia com Henrique & Juliano, Kevin O Chris, Anavitória, Gabz, É O Tchan, Homenagem a Beth Carvalho com Roberta Sá, Moacyr Luz, Nelson Sargento e Mumuzinho, Netinho de Paula, MC Rebecca, Chupeta Elétrica, Tatau, Marcelo Mimoso, Céu na Terra, São Clemente e União da Ilha e os anfitriões do evento: Roda do Spanta e Spantosa Bateria. O festival terá edições ainda nos dias 25 de janeiro e 1º de fevereiro.
Você lançou seu primeiro disco, "Escuta", há mais de seis meses. Como está a sua carreira de lançar o disco?
Olha, o retorno está sendo bem legal. É algo que eu, como uma artista nova, lançando meu primeiro álbum, há seis meses, mas já tendo resultados como três músicas em novelas da Globo — tem uma em 'Malhação', "Dilema", tem uma em 'Bom Sucesso' ("Arte") e agora em 'Amor de mãe', "Faz uma locuura por mim", que é a minha releitura da Alcione. Eu já representei o Brasil em Tulum, no Prêmio Platino de Cinema Iberoamericano, no México, fiz um Rock in Rio… Essas grandes coisas fazem com que eu tenha muita vontade de, cada vez mais, me posicionar enquanto artista e alcançar espaços.
Além das coisas que você já citou, você cantou com a Alcione, gravou com o Rodriguinho com o seu disco… Para você, teve algum momento na sua carreira em que você pensou: "Caramba, isso está acontecendo mesmo?". Caiu uma ficha para você?
Cara, tem vários momentos. Chegar no estúdio e me deparar com a Alcione, ouvi-la colocar a voz na harmonia que eu pensei, na roupagem que eu pensei (para a música), foi uma parada muito surreal para mim. Outra coisa também — é muito engraçado, eu acho que vai caindo a ficha aos poucos — é quando você chega no show e cantam a sua música. Eu fico assim: "Gente, como assim vocês estão cantando a minha música?". Para mim é uma coisa muito engraçada. As pessoas ficam assim: "Malía, como assim você está surpresa com isso?". Mas é que a música para mim é um processo muito natural e, muitas vezes, introspectivo, então quando isso transborda, vai ao público, quando eu externalizo isso e vejo que pessoas gostam, se conectam comigo e, mais do que isso, elas potencializam a música, isso faz com que eu me sinta muito abraçada, faz com quem caia um pouquinho a minha ficha, porque eu acho que não tem como eu saber, entender tudo o que tem me acontecido na proporção que tem sido. Mas dá para eu me sentir feliz e grata. E tendo noção, pelo menos um pouquinho.
E como é que a música surgiu na sua vida? Como você foi tendo desejo de trabalhar com música?
A minha educação musical sempre foi algo presente na minha vida, eu sempre ouvi muita música em casa, os mais mais sempre tiveram muitos CDs. O meu pai, por exemplo: ele construiu duas caixas de som. Comprou madeira, fórmica, tudo. A gente tinha e tem toca-discos. Então sempre foi algo a que eu tive muito acesso. E a minha mãe sempre me falou sobre a importância da música brasileira para mim, sobre a importância de eu me reconhecer enquanto Brasil, de eu gostar daquilo que vem de onde eu moro. Então sempre foi um processo muito natural. Todos os dias na minha casa tia música. Sempre cantei todos os dias. Até que um dia as outras pessoas perceberam que eu era afinada, porque eu canto porque eu gosto. É um negócio que eu me sinto bem (fazendo). As pessoas que foram perceber era algo com que eu poderia trabalhar, para mim foi difícil pensar na música enquanto profissão. Hoje eu me entendo enquanto marca, mas foi difícil. Nem passava na minha cabeça que eu poderia ganhar dinheiro com música, porque era algo que eu amava e fazia parte do meu dia a dia mesmo.
Eu li que você achava que iria seguir carreira acadêmica. Em que momento teve uma virada em que você falou: "Eu posso ser cantora como profissão"?
Eu amo estudar, é uma coisa que eu amo fazer. Por mais que eu não gostasse tanto do sistema da educação, eu acho que é um pouco agressivo. Eu estudava no Jardim Botânico, morava na Cidade de Deus, então a meritocracia não se aplica, era algo completamente difícil, não era só estudar, existem várias dificuldades que cercam esse "ter acesso à educação". Mas era um negócio que eu gostava de fazer. Sendo que, quando eu comecei a pesquisar faculdade… Porque eu não acredito que o jovem entenda cem por cento, tenha informação suficiente para entender o que é faculdade. Com 17 anos, eu não sabia o que era. Até hoje talvez eu não saiba totalmente o que é. Óbvio que entendo muito mais e tal, mas eu não sei o que é viver uma faculdade. Eu ficava ali, sem saber muito o que fazer. Assisti diversas palestras em algumas faculdade, inclusive na escola onde eu era bolsista, e concluí que não era vida acadêmica que eu queria seguir. E foi algo muito difícil, porque eu, enquanto jovem negra favelada, era o que minha mãe poderia me dar: informação, estudo, para eu para o meu futuro. E eu decidi que não queria fazer, porque eu vi que não era por aquilo que meu coração pulsava. Todas as vezes que meu coração pulsava era quando era falado sobre arte, fazer o que sente vontade. E foi aí que a minha chave virou. Mas foi algo muito tranquilo, porque, assim que eu acabei o ensino médio, eu assinei com a gravadora. Eu encontrei a Duto, que é uma produtora situada em Madureira, e juntos nós fizemos a conexão com a Universal Music.
Mas você começou como?
Eu postava vídeos nas redes sociais e isso foi crescendo, cada vez mais. As pessoas foram se conectando a mim. Alguns artistas se conectaram a mim também, porque eu fazia covers deles, versões — sempre gostei de fazer, sempre gostei de brincar com a música. Na época, eu nem era Malía, eu era Isadora Machado ainda, e pessoas como Emicida, Caetano, Ludmilla, Elza Soares já interagiram comigo, por conta dos vídeos, e isso foi só crescendo e potencializando.
Você estava comentando que cresceu na Cidade de Deus. Ainda vive lá?
Eu vivo lá no modo de falar. Por exemplo, hoje, eu estava dormindo lá. Eu não moro mais lá, mas a minha família é toda de lá, meus amigos estão lá, é meu lugar, eu estou sempre lá. Pelo menos uma vez na semana, eu estou na Cidade de Deus. Seja dormindo na casa da minha madrinha, encontrando meus amigos…
Você está morando onde, hoje em dia?
Estou morando no Pechincha, que é bem próximo também, Jacarepaguá.
Você sempre fala da sua origem, da favela. Como sente a importância de uma artista como você — mulher, negra, vinda da favela, associada a todo aquele estereótipo, ainda mais a Cidade de Deus, que tem o filme…?
Eu vou fazer as pessoas entenderem que várias coisas que elas desnaturalizam são naturais. Porque elas sempre colocam nesse lugar de: "Nossa, você conseguiu isso!". Eu realmente sou negra, favelada, da Cidade de Deus. O meu papel eu sinto que é fazer que as pessoas entendam que estar nos lugares e ocupar os espaços com características diferentes entre si é algo normal. Eu não necessariamente vou cantar sobre a Cidade de Deus, mas não é por isso que eu não tenho a Cidade de Deus na minha música. É fazer ser natural mesmo, porque as coisas às vezes são muito caricatas. Tipo: "Eu sou da Cidade de Deus, sou negra, vou falar que sou negra na música e que sou da Cidade de Deus." Posso fazer? Sim, posso fazer. Mas eu posso ser o que eu quiser. Isso eu vou continuar sendo para sempre, independentemente de eu falar ou não. É algo natural. E aí é agir com essa naturalidade mesmo, eu acho que acrescento isso para as pessoas que vêm de onde eu venho. Primeiro, para elas entendem que têm direito a todos os espaços, e para as pessoas que não acham que certos lugares são para a gente compreenderem que é a coisa mais normal uma pessoa viver e transitar pelos espaços. Eu acho muito importante bater na tecla, com naturalidade, de que eu vim desse lugar, de que eu sou isso, porque ainda agem como se isso fosse algo anormal.
E a gente está passando por um momento de evidência para as compositoras em geral, como a gente nunca teve aqui no Brasil e, nessa cena, se destacam várias cantoras e compositoras negras. Não é que não existissem antes… Só que estamos vivendo uma época de finalmente ter esse espaço. Como você vê esse momento na música?
Acho que a gente iniciou uma discussão que precisava ser iniciada, porque o Brasil, enquanto país colonizado, está muito atrasado mesmo nessas questões de identidade. Acho que temos um bom começo, mas precisamos começar a nos aprofundar. É muito fácil a gente se perder pelo caminho e parar na parte estética, porque estamos vendo corpos negros estampados no outdoor. Mas eu quero saber: quantas pessoas negras estão espaço de desenvolvimento da publicidade? É muito importante iniciar essa discussão, mas, mais do que isso, efetivar essa discussão. E a gente vai fazer isso aos poucos. Ao mesmo tempo, eu, enquanto artista — e eu entendo que o meu papel também é político — quero fazer com que as pessoas pensem criticamente sobre isso. Porque eu não quero que pareça que eu estou nos espaços, eu quero me ver nos espaços de fato. Eu quero que isso seja efetivado. Essa naturalidade vai ajudar as pessoas entenderem que uma pessoa preta publicitária é algo legítimo também. Isso é muito importante. O brasileiro não se reconhece enquanto negro, muita gente ainda não sabe, ainda estamos nessa discussão de quem é negro e quem não é, por incrível que pareça. Isso é importante para que as pessoas se reconheçam e saibam seu valor. A música vem para informar, conscientizar. As pessoas falam sobre empoderamento. Essa é uma palavra que eu não costumo usar. Porque empoderar significa dar poder. E eu não acho que alguém dá poder a ninguém. Acho que as pessoas se conscientizam de que existem ferramentas que permitem que elas exerçam esse poder. "Dar poder" fica muito no campo do raso, da imagem, da estética. A gente precisa falar de educação, de informação, de como exercer esse poder, para além da estética. Em muitos lugares aonde eu chego, as pessoas ainda se espantam: "Nossa, o cabelo dela!". Como assim, se 53,6% da população é negra? Como as pessoas se chocam porque tem pessoas negras nos espaços? Então é isso, ocupar mesmo, mudar no ato. Mas acho muito importante que existam essas cantoras. E também acho muito importante exaltar quem veio antes de mim. Porque sabem de onde eu vim. Tenho muito mais segurança para onde eu vou. Acho muito importante ter gente como a Ludmilla, periférica, LGBT, compositora, tem uma qualidade enorme no trabalho dela. Iza também. É importante ter mulheres negras em vários espaços. Não só as faveladas, porque existe mulheres de outras origens. Uma pluralidade mesmo dentro do "ser negro".
Mudando de assunto, com quem você gostaria fazer um feat este ano, se você pudesse escolher?
O meu sonho, que eu sonho bem alto (risos), é Djavan. É o artista que eu mais ouvi na minha vida. Mas depois da Alcione, que foi tudo tão natural, tão bom, leve, eu acho que não duvido mais de nada.
E o que você planeja para 2020? Vai lançar coisas?
Eu fiz um songcamp, reuni alguns compositores, cantores dentro de um estúdio lá em São Paulo. Em dois dias, saíram 23 músicas. E o formato de lançamento eu ainda não sei, mas eu vou soltar bastante música este ano.
Quando foi?
No fim do ano passado.
E que compositores estavam com você, pode adiantar?
Tinha Luccas Carlos, Day, Carol Biazin, Amanda Coronha… Ah, tinha uma galera.
Vai lá:
Verão do Spanta
Quando: Sábado, 18 de janeiro, às 16h
Onde: Marina da Glória. Av. Infante Dom Henrique, s/nº – Glória
Quanto: R$ 120 (meia-entrada) e R$ 240
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