'Fomos humilhados, mas resistimos', diz Deize Tigrona sobre o funk
Na primeira década dos anos 2000, Deize Tigrona era uma das principais MCs do funk carioca. Seu primeiro sucesso foi "Injeção", sampleada pela cantora cingalesa M.I.A. na música "Bucky Done Gun" em 2005. Àquela altura, a faixa já era conhecida nos bailes e nas rádios da cidade. Deize passou a se apresentar em casas da Zona Sul do Rio e logo estava embarcando para uma turnê na Europa.
Sua carreira tinha começado em 1997, quando gravou pela primeira vez. Ela, que trabalhava como empregada doméstica, escrevia poemas e logo começou a fazer músicas. Quis cantar. Acabou registrando "Hilda Furacão" com o DJ Duda, que comandava um baile no Coroado. "Injeção" viria ser composta em 2002. Em 2008, de volta da Europa, Deize se sentia estranha. Demorou para entender que era depressão. Sumiu da vida artística.
Voltou a ser notícia em 2014, quando foi trabalhar como gari em um hospital. Tinha passado em um concurso na Comlurb. Todos queriam entender o que tinha acontecido com a cantora e compositora. Apesar do sucesso, Deize não tinha ganho tanto dinheiro assim. Começou a fazer um show aqui e outro ali, ainda de forma esparsada. Lançou algumas músicas.
Aos 40 anos, Deize comemora a retomada de sua carreira. Em 2019, fechou parceria com a Batekoo Music, selo do coletivo que organiza a famosa festa, e partiu para 11 shows na Europa em outubro. Atualmente, está em licença não remunerada da Comlurb. Lançou na sexta passada o single "Vagabundo" e prepara um álbum. Segue morando na mesma comunidade, a Cidade de Deus, com o marido e três filhos.
Hoje, a cantora se apresenta duas vezes no Rio: na Maré, na Mostra Maré de Música, com Duda Beat, Afrofunk Rio e Amaréfunk, e na Batekook, no Viaduto de Madureira. Deize bateu um papo com o Rio Adentro sobre a volta de sua carreira, depressão e o atual momento do funk, entre outros assuntos.
Como está sendo a volta da sua carreira artística? Como você está se sentindo?
Para mim, é impressionante, porque, você sabe, trampo de artista musical é uma coisa bem difícil para segurar e manter. Quando você para por dez anos e volta desse jeito, já fazendo evento, voltando para a Europa, coisa que para mim parecia impossível, é totalmente impressionante. Eu estou muito feliz.
Como está sendo para conciliar seu outro trabalho? Ou você está só com a música de novo?
Eu estou no mundo artístico de novo e só. Estou numa licença não remunerada na Comlurb, onde fiquei cinco anos. Eu tenho mais um ano para pegar se eu quiser.
Você é de um tempo em que os artistas do funk acabaram não ganhando muito dinheiro, apesar do sucesso que fizeram…
É. Naquela época, foi o momento da luta, da insistência, para o funk estar hoje do jeito que está, nesse capital que tomara que chegue para mim também. Fomos humilhados, pisoteados, paralisados, mas resistimos, sabe? Apesar de hoje estarem tentando terminar com o funk de favela, ainda temos essa resistência com o baile de rua, aos trancos e barrancos. No início, de 1997 para 1998, existia baile de briga, que era lado A, lado B, que era um corredor. Com o baile que a gente fazia no Coroado (comunidade em Laranjeiras), com o tempo, o de briga acabou e só ficamos nós no Coroado fazendo funk putaria, duplo sentido, como eles falavam. E hoje está uma mudança geral, eu ouço muito mais funk do que pagode nas rádios.
Hoje a gente vê os artistas ganhando dinheiro, mas os bailes nas favelas sendo perseguidos, a gente viu Paraisópolis agora…
Foi um massacre, né? Como isso acontece num lugar onde eles chegam e veem que tem uma multidão? Matar adolescente do jeito que mataram, nossa…
E você foi uma das primeiras mulheres cantando no funk, e hoje a gente vê muitas se destacando nele. Tem a Anitta, que foi para outros estilos, mas ficou conhecida pelo funk. Como você vê isso hoje? O que você acha das mulheres das novas gerações no funk?
É como eu estava falando: lá atrás foi aquela resistência, aquela luta para hoje o funk estar do jeito que está. Eu torno a dizer que estou ouvindo muito mais funk na rádio, em todo lugar que a gente passa. A Anitta iniciou no funk e hoje em está em outro patamar. Então é isso: o funk abre portas. As meninas e até os meninos cantando funk hoje… é uma coisa diferente. Antigamente, o pessoal queria ser jogador de futebol. E hoje em dia quer ser um DJ, um MC, e isso é um movimento revolucionário. A Anitta estar onde está, isso é ótimo. E eu vejo que ela não esquece das mulheres do funk, apesar de ela ter falado com que falou (risos). Ela foi infeliz nesse fala (Anitta disse em uma rádio espanhola que foi a pioneira a abrir espaço para as mulheres no funk), mas acho que foi um lapso.
E vejo os garotos querendo também ser dançarinos de passinho, que surgiu nos bailes…
Sim, sim. O mercado hoje em dia para o funk se tornou uma porta escancarada. São vários processos. Antigamente, a gente dava entrevista falando que o funk movimentou o comércio, as bebidas, o DJ, o motorista, o cara que carrega as caixas de som. Não é uma coisa mais só da favela. É de fora também. E tem o pessoal que está desenhando roupa, vestindo a gente, maquiando, fotógrafo. O mercado tem bem mais oportunidade.
Vi que você ia viajar com a Batekoo. Como foi?
Nós fomos em outubro para a Europa, fizemos acho que sete países.
E como foi seu encontro com a Batekoo?
Eu já conhecia o Maurício (Sacramento, um dos criadores da Batekoo) desde 2014. Teve uma festa em Salvador e ele me convidou para ir. Na época, eu não estava bem ainda, mas o que aparecia eu estava fazendo e, pelo fato do povo saber que eu estava parada, estava aparecendo pouco. Então, quando ele fez esse convite, eu fui, até a minha irmã foi comigo. Ele tinha acho que 18 ou 19 anos. E ele contou que queria fazer uma festa. E o Maurício, nossa, teve essa ideia de fazer essa festa com o nome Batekoo, e deu certo. Hoje em dia, é uma realização não só para eles, mas para o movimento todo. Porque a Batekoo dá importância aos LGBTs, aos negros, e isso faz com que as pessoas vão na festa e aceitem sua cor, seu cabelo. É um movimento totalmente positivo em relação à autoestima.
E essa parceria tem tudo a ver com a sua volta, né?
Tem, sim. A Batekoo fez esse convite para eu trabalhar com eles. Eles são pessoas novas e muito inteligentes, que procuram também ouvir os outros para fazerem as coisas darem certo. Eu, no caso, também sou uma das pessoas que eles procuram escutar (risos).
E como foi para uma pessoa pobre ter passado pela depressão? A gente sabe que tem preconceito, tem gente que acha que depressão é frescura, que pobre não tem depressão…
Quando eu me vi estranha, eu tinha voltado da Europa, tinha gravado com os Buraka Som Sistema em Portugal. E voltei para o Brasil e tinha uma data para fazer em Porto Alegre. Eu falei que eu não ia, que eu não estava bem. E realmente eu não estava, eu menstruei umas duas vezes no mês na Europa, e eu fiquei dois meses lá. Voltando, eu falei que eu estava mal e não ia fazer o show. Teve uma entrevista para a revista Rolling Stone e ali mesmo eu já falava o que estava acontecendo comigo, mas sem saber o que era. Só que foi se intensificando, e eu fui procurar ajuda, fui no hospital e tudo, e o médico disse que era depressão. E eu falava: "Não, quem tem depressão é rico." Até eu mesma… Foi difícil de aceitar. Fui em outro, outro, outro: só dava a mesma coisa. Para mim, foi: "Nossa." Para uma pessoa na favela, era como se eu estivesse maluca, sabe? Então é difícil. O meu marido me apoiou, me ajudou muito, mas tinha vez que acho que nem ele acreditava. Eu acordava ele e falava: "Eu não estou bem, não estou conseguindo dormir." E ele com sono, tinha outras coisas para fazer, acabava dormindo. E às vezes ele me pegava na rua, de madrugada, querendo conversar com alguém. Até que, conversando com a minha tia, ela disse: "Deize, eu tive depressão." Na favela, era considerado maluquice. Mas, hoje em dia, o pessoal está vendo que a depressão existe, seja para pobre, para rico. Agora a favela está dando essa importância a psicólogo, psiquiatra, conversas, um apoiando o outro. E isso é uma coisa fundamental. Estou vendo a comunidade com uma visão diferente, e isso é ótimo.
Como você está hoje? Está bem?
Estou bem, estou bem, estou ótima (risos). Trabalhando mais agora, compondo, fazendo minhas letras, trabalhando com a Batekoo, para que, se tudo der certo, esse giro de capital também venha para mim.
Às vezes também o artista não sabe tudo a que ele tem direito, no sentido dos direitos autorais, por exemplo…
É, mas naquela época, eu cheguei a fazer dez shows num fim de semana. Por cada um, eu ganhava R$ 300. Hoje em dia, que o funk realmente está na mídia e o pessoal está vendo a importância de ter o funk, de abraçar o funk, de trabalhar no funk, grandes empresas estão investindo. E aí que está o capital. Naquele época, era diferente. É hoje o mercado.
Você sentia falta? Sempre desejou voltar com a sua carreira?
Eu sempre desejei, sim. Na época, eu lembro que, mesmo com deprê, um amigo me ligou e pediu uma música. Foi quando eu passei "Prostituto". Nem sabia o que ia acontecer, não conhecia Jaloo nem nada. Só fui para São Paulo uma vez e ele estava no mesmo evento que eu, mas ele estava tão doido, eu também estava tão doida que acabamos passando direto. Hoje em dia é que a gente conversa bastante e até tem a promessa de fazer um outro trabalho, ele está querendo fazer de novo. Então é isso, nesse meio-tempo, eu tinha vontade, mas achava que tinha acabado para mim. Porque as pessoas falaram tantas coisas: que eu tinha medo de voo, que não pegava avião, que eu tinha virado cristã… Nossa, mil coisas. Eu passei um tempo até chateada com a mídia, até que queriam que eu mudasse a "Prosituto" para fazer programa de TV, e eu não quis mudar, e eu no meu canto, não queria mais fazer mídia nenhuma. Eu bloqueei meu Orkut na época, meu MySpace, tudo, não estava falando com ninguém. Só mesmo o amigo que pediu "Prostituto" e eu passei. Fiz essa e "Madame" e conheci o Maurício, que hoje é da Batekoo. Essa vontade estava escancarada. Mas hoje em dia tudo é uma produtora, é uma grande mídia, eu esperava o momento certo.
E como é sua vida hoje em dia? Seus filhos moram contigo e seu marido na CDD?
Sim, mora todo mundo junto: meus filhos, meu marido. De vez em quando meus sobrinhos vêm, fica todo mundo junto.
São quantos filhos?
Eu tenho três: duas menina de sangue e o meu filho de coração, que é o João.
Vai lá:
Mostra Maré de Música
Quando: Sexta, 20 de dezembro, às 19h
Onde: Centro de Artes Maré. Rua Bitencourt Sampaio, 181 – Maré
Quanto: Grátis
Batekoo
Quando: Sexta, 20 de dezembro, às 23h
Onde: Viaduto Negrão de Lima. Rua Carvalho de Souza – Madureira
Quanto: R$ 10 (antecipado) a R$ 25. Grátis para pessoas trans.
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