'Nós, minorias, sofremos ataques diariamente', diz Romero Ferro
No primeiro disco, 'Arsênico', de 2016, Romero Ferro apostou no pop dos anos 80 com influências de funk, rock e R&B. No segundo trabalho, decidiu dar uma guinada em sua sonoridade: ao lado de ao Patrick Tor4 e Leo D. (tecladista do Mundo Livre S.A.), diretor artístico e produtor do álbum, respectivamente, no recém-lançado 'Ferro' ele aposta na mistura de brega e new wave, que prefere chamar de tropical wave.
Um dos destaques da música pernambucana independente hoje, ele conta que o processo de composição do trabalho foi também o processo pelo qual se assumiu gay por completo. "Eu consegui me entender muito mais. Nunca achei que isso poderia acontecer, eu acreditava que eu já estava muito bem-resolvido, que a minha cabeça já estava muito OK (risos)", admite ele, atração da primeira edição carioca do festival 5 Bandas, nascido em São Paulo, que ainda tem Tantão e os Fita, Àiyé (projeto de Larissa Conforto, da banda Ventre), Leto e John Film.
Ele também defende que é "de suma importância" que artistas LGBT se posicionem a respeito disso, mas que cada um vai entender como abordar a questão. "Porque nós estamos num momento em que todo mundo está cobrando muito coisas e posicionamentos dos outros, quando na verdade eu acho que a real é você se autoconhecer e cobrar esses posicionamentos de você. Quando você faz isso, deixa o outro em paz e se melhora", argumenta.
Você lançou um disco há pouco tempo. Como está sendo a recepção ao álbum novo, que marca uma mudança no seu som — embora antes você já tenha lançado singles que davam uma pista do que vinha por aí. Como está sendo essa nova fase?
Eu estou num momento bem feliz e bem realizado com esse processo todo. Lançar um disco — esse é o meu segundo — é sempre um processo que demanda muito esforço psicológico, físico, financeiro. Você precisa ficar parado de fato para poder criar, para poder pensar em todos os detalhes da melhor forma possível. Eu adoro esse processo de criar mesmo. Porque, agora que o disco foi feito, eu basicamente vou repercutir, o que eu já lancei, já escrevi, já compus. E eu estou tendo uma aceitação muito positiva nesse trabalho como um todo. Diferentemente do álbum passado, que eu lancei todo de uma vez só, nesse trabalho novo a gente resolveu ir soltando pílulas do disco do final do ano passado para cá, porque aí eu já estava dando de fato um indicativo do que eu ia fazer, de como estava a minha cabeça e tal, e também para sentir o público. Lancei o primeiro single, depois o segundo, a receptividade foi muito positiva. Aí eu soltei o terceiro single e mergulhei nesse universo da música tropical misturada com new wave, misturada com a música pop. Tem sido divertidíssimo para mim fazer música dessa forma, de uma maneira despretensiosa, pensando em divertir as pessoas, em fazer com que elas dancem e ao mesmo tempo pensem. Para mim foi um desafio, está sendo, mas eu me sinto alimentado em perceber que o feedback está sendo real, honesto, que o público está se identificando, está gostando, que o meu trabalho está crescendo muito por conta desse esquenta que eu fiz para o disco e do álbum, que chegou agora, há exatamente um mês. Só estou pedindo ao universo que as coisas continuem caminhando nesse fluxo, porque eu tenho a certeza de que o final deste ano e o ano que vem serão muito frutíferos e de muito trabalho.
Estamos num momento em que a cena pernambucana independente está chamando atenção, tem muita coisa sendo vista pelo resto do país. Mas uma boa parte dessa cena tem um estilo diferente do seu, mais calcado no violão. Você está indo por um caminho diferente, com uma sonoridade particular. Como você vê esse momento da música pernambucana independente? E como se vê trilhando um caminho à parte?
Eu acho a música pernambucana muito rica. É um estado muito plural de sonoridade. Não sei se você conhece Pernambuco, se já foi em Recife. Você vai encontrar artistas fazendo todo tipo de música que você imaginar, e fazendo isso bem. Desde as músicas voltadas para os ritmos regionais de lá, mas muitas não voltadas para eles. A gente tem uma gama de artistas muito importantes. Quando eu comecei a fazer esse projeto, eu sabia que ele era diferente do que se fazia lá e dos nomes que estavam passando a despontar para fora do estado. Isso para mim foi instigante, porque eu sou sempre muito seduzido pelas coisas novas — eu sou ariano, então tudo que é novo me seduz, e tudo que é desafiador também — e, ao mesmo tempo, eu fiquei um pouco aflito. Porque, quando eu iniciei o processo de composição desse álbum, eu sentei com o Patrick Tor4, que fez a direção artística do trabalho junto comigo, e eu estava em dúvida se eu ia fazer um disco só de brega pernambucano, só de new wave — foi inclusive ideia do Patrick misturar tudo num álbum só. E a gente não tinha nenhuma referência exata de ninguém que tivesse feito ou que estivesse fazendo aquilo nesse período. A gente ficou um pouco aflito, mas ao mesmo tempo se sentiu desafiado por isso. Inclusive foi um dos motivos que nos fizeram soltar o trabalho aos poucos. Porque, se a gente tivesse lançado o primeiro single e ele não tivesse dado certo como deu, a gente provavelmente teria pensado em levar o resto do disco para um outro lado. Eu fico feliz em estar fazendo isso, estar me colocando nesse processo. Acho que num primeiro momento talvez eu não tenha sido completamente compreendido na cena do meu próprio estado, mas logo no segundo instante eu consegui impor o que eu estava querendo fazer de uma forma verdadeira. E acho que todo trabalho no qual você bota verdade transcende. Independentemente se está numa cena que já está rolando ou não. E foi o que aconteceu e está acontecendo comigo. Hoje a artista que faz uma sonoridade mais próxima do que eu faço de Pernambuco é Duda (Beat), mas mesmo assim ainda são sons diferentes. Porém, a gente brinca com essa coisa da música tropical, temos elementos da música brega no nosso trabalho — eu tenho muito mais o brega no meu disco como um todo. Para mim, está sendo um desafio bom. E, graças a Deus, como eu disse, está tendo um feedback muito positivo, e estou completamente mergulhado nisso.
O disco fala muito de sexualidade, de amor, dor de cotovelo, todo esse universo afetivo e sexual. Como é falar abertamente de amor e sexo gays, principalmente neste momento que a gente está vivendo no Brasil?
A música sempre me ajudou a superar os meus medos e minhas inseguranças. Quando eu lancei o 'Arsênico', em 2016, eu já sabia da minha sexualidade, já me entendia mais ou menos com relação a tudo nesse meio LGBTA+, mas eu não falava sobre isso abertamente nem em público. Porque, primeiro eu não me sentia seguro o suficiente para falar sobre isso e para levantar uma bandeira, tinha medo de levantar uma bandeira e parecer que eu estava sendo oportunista ou estava querendo calcar o meu trabalho sobre isso. E a música me ajudou a encontrar um caminho de falar sobre isso do meu jeito, de uma forma bem Romero de dizer. O processo de composição desse disco foi também foi o processo em que me assumi por completo, externamente, para todas as pessoas que de repente tinham alguma dúvida ou que sabiam e não queriam comentar. Eu conversei com a minha família e disse que não ia mais tratar isso como se fosse uma coisa errada — porque não é, nunca foi, mas eu sou do interior de Pernambuco e eu ouvi isso a minha infância inteira: que era pecado ser homossexual, que era pecado você falar sobre sexo explicitamente, que era pecado ir de encontro a pessoas mais velhas e religião e tal… E a música me ajudou a pular todos esses obstáculos, abrir a minha cabeça e entender que o sentido da vida vai muito além de todas essas coisas que tinham me dito quando eu era pequeno e quando eu era jovem. Tanto que a capa do disco é um coração de ferro. Por conta do meu nome, mas também dessa ideia de que eu me protegi do mundo por achar que eu tinha que me fechar, que eu não precisava dividir, que eu não precisava falar sobre isso. E nesse disco eu faço o inverso do que eu fiz a minha vida inteira, que foi me me proteger. Nesse álbum eu me abro até para possíveis ataques ou qualquer coisa negativa, mas me abro, porque hoje eu sinto que a minha voz precisa existir nesse meio, porque tem um público que está junto comigo e que eu para esse público e esse público fala para mim, então é uma troca diária, é uma troca de uma força, é uma troca de energia. Eu tinha que fazer isso. E a música me ajudou a chegar e a encontrar esse ponto para abordar todas essas questões que estão nesse disco. Que, ao mesmo tempo, são pontos muito em comum a todas as pessoas: sofrimento, desilusão amorosa, sexualidade, sociedade, política, autoaceitação, mal aceitação, medo, ego. Todas essas coisas que o meu álbum trata são coisas que você viveu e vive, eu vivo e vivi o tempo inteiro. Eu sabia que isso contectar mais as pessoas, porque você faz a arte — eu, pelo menos, faço — pensando em conectar pessoas. Eu fui buscar pontos de conexão em todas as músicas que eu escrevi para que qualquer pessoas de qualquer lugar do mundo pudesse ouvir e pensar: 'Putz, eu passei por isso, eu estou passando, eu vou passar, tem alguém que está passando.' E é isso, a nossa função como artista é conectar pessoas e dar voz a quem de repente não tem força para falar. Eu recebo mensagens diariamente de fãs, de admiradores, de familiares que ficaram contentes com o meu posicionamento desde então e que (contam que) isso tem ajudado a vencer algum obstáculo. Eu fico superfeliz, porque eu sou um ser humano em constante amadurecimento, aprendendo, acertando, errando todos os dias. Poder ter um pouco de importância na vida de uma pessoa nesse sentido para mim já vale toda a pena, o esforço que é feito em cima da música, do que eu faço. Cada vez eu fico mais certo do que eu estou fazendo.
Eu ia perguntar mesmo isso, se você tem retorno dos fãs…
Tenho muito, agora que eu tenho mesmo (risos).
Como você se sentiu abordando esse assunto sem meias-palavras? Foi um sentimento de alívio?
Foi um mix de muitas coisas. Eu acho que, por mais que você: 'Ah, eu sei de mim, as pessoas que me amam já sabem quem eu sou', quando você fala sobre isso, parece que vai se autoanalisando no mundo. Eu consegui me entender muito mais. Nunca achei que isso poderia acontecer, eu acreditava que eu já estava muito bem-resolvido, que a minha cabeça já estava muito OK (risos). Mas, quando você passa a falar sobre o assunto, passa a se colocar no lugar do outro, a desenvolver empatia, a pensar em você vai dizer da melhor maneira, em que lugar de falar você está, em que lugar no mundo você está, em que lugar de falar as pessoas lhe veem, como as pessoas lhe veem… Isso foi e é um processo de amadurecimento muito grande para mim. Porque é uma troca. Eu não estou sozinho, eu não estou falando sozinho, eu escuto coisas também. Tudo isso é muito importante.
Hoje a gente está passando por um momento de extremos: muitos avanços por um lado e, ao mesmo tempo, pessoas e movimentos querendo perda de direitos, querendo voltar para o passado. Você acha que neste instante é importante que um artista LGBT, por exemplo, se posicione e trate desses temas?
Eu acho de suma importância. Porque a gente está num momento social, político muito crítico. E não só no Brasil, como no mundo no todo. Mas principalmente no nosso país, por conta desse governo, por conta desse presidente que foi eleito. Eu vejo hoje que o fato de você ser você e peitar isso no mundo e para as pessoas é o maior ato de resistência que você vai estar fazendo na sua vida. Isso reverbera para tudo. Logicamente, eu acho que como artista você tem que entender como vai falar, como quer abordar isso. Tem artistas que vão falar muito sobre isso. Tem artistas que vão falar, mas que não vão botar nas músicas. Tem artistas que vão botar nas músicas, mas não vão falar pessoalmente. É uma construção individual de cada um. Mas você ser você e assumir isso é importantíssimo, porque isso estimula as pessoas que estão à sua volta, que estão junto de você, que estão acompanhando você a fazerem a mesma coisa. E a gente vai quebrando essa hipocrisia, esse preconceito, esse machismo arraigado que existe na nossa sociedade. E que vai sempre existir. É uma utopia achar que isso vai acabar cem por cento. Mas você precisa acreditar que isso pode ser menor, você precisa acreditar que pode combater um pouco disso a cada dia. E, se todo mundo tiver essa consciência de que é uma atitude sua, que vai reverberar nisso e vai trazer várias outras coisas de forma positiva, a gente vai crescer e galgar muitos avanços e amadurecimentos. Porque nós estamos num momento em que todo mundo está cobrando muito coisas e posicionamentos dos outros, quando na verdade eu acho que a real é você se autoconhecer e cobrar esses posicionamentos de você. Quando você faz isso, deixa o outro em paz e se melhora. E, se você se melhora, você melhora seu entendimento, sua empatia, compreende o que está fazendo, o que está falando, com quem está falando. Eu costumo dizer que, se cada pessoa que está aí, reclamando de alguém parasse para falar e entender os erros que estão dentro de si — que são muitos, a gente vai estar sempre se melhorando e amadurecendo — a gente ia estar anos-luz na frente.
Você falou que se abriu de uma forma nesse trabalho que isso poderia expor você a tudo, inclusive a ataques. Já sofreu algum tipo de ataque?
Já sofri, sim. Tanto sendo artista, ataque de preconceito mesmo. Nós, minorias — LGBT, raciais, religiosas —, sofremos ataques diariamente. Como já sofri também com pessoa não sabendo que eu era um artista, e que me atacou por causa da minha orientação sexual, pela maneira como eu estava me vestindo, como eu estava falando, alguma atitude minha. É o que eu falei: você ser você e bancar isso é um ato de resistência, sim. Isso é importantíssimo.
Vai lá:
5 Bandas
Quando: Sábado, 12 de outubro, a partir das 19h
Onde: Casarão Floresta. Ladeira dos Guararapes, 115 – Cosme Velho
Quanto: R$ 20 (meia-entrada) a R$ 40
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