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'Ninguém fala: o rapper hétero Fulano de Tal', diz Jeza da Pedra

Kamille Viola

28/06/2019 15h30

Jeza. Foto: divulgação/João Pacca

Nascido no Complexo da Pedreira, no bairro de Costa Barros, na Zona Norte do Rio, Jeza da Pedra teve as mais diferentes influências: música evangélica, funk, rap, samba e pagode são alguns dos elementos que formaram a identidade do artista. Filho de uma caixa de padaria e um pedreiro, teve uma vida nada fácil e as mais diferentes profissões: trabalhou em sauna, foi gerente de motel, concierge de hotel, atendente de telemarketing, apresentador de karaokê. Quando fazia parte da ONG São Martinho, estudou música na Escola Villa-Lobos. Na sauna, conheceu um namorado rico, que o incentivou a fazer faculdade — ele se formou em Letras na PUC-Rio, com direito a uma passagem pela Sorbonne, na França.

Em 2015, largou o emprego de tradutor para se dedicar à música.  Em 2017, lançou seu trabalho de estreia, o EP "Pagofunk Iluminati". De lá para cá, as coisas foram evoluindo de forma bem rápida: ele abriu shows importantes e foi convidado pelo produtor Kassin para um projeto em dupla. O JezaKassin, que hoje faz sua primeira apresentação — no Circo Voador, abrindo para a Nação Zumbi —, tem um EP de quatro faixas, lançado em abril, e ainda este ano solta um álbum. "Acho que o Circo se transformou no lugar onde eu mais me apresentei na minha vida. Inclusive hoje (quinta) eu também vou tocar lá. Essa vez com o Kassin acho que vai ser a quinta", conta Jeza.

Sua carreira só faz crescer, mas os perrengues seguem. Ele se mudou da Pedreira, por conta da violência (é o segundo pior IDH da cidade, frisa), mas ainda denuncia o que chama de apartheid geográfico da cidade: morando em Campo Grande, leva cerca de três horas para chegar ao estúdio de Kassin, em Botafogo. Mas as dificuldades não param o rapper: enquanto termina o álbum em dupla, ele planeja um EP audiovisual para o segundo semestre, com três clipes. Para isso, abriu um crowdfunding. "Se não rolar, também, foda-se, eu vou fazer de qualquer jeito, eu vou soltar no segundo semestre na marra. A gente só trabalha com o impossível (risos)", brinca.

Esse show do Circo é o primeiro de você e do Kassin? Como estão as expectativas?

É o primeiro! A gente está bem ansioso e com ótimas expectativas. Porque tendemos sempre a gostar mais do trabalho que estamos fazendo no momento.  Essa parceria com o Kassin está sendo incrível, ele é um puta músico, um gênio, compreensivo, e a gente está meio que na mesma sintonia. Então é muito gratificante, para além de putz, cara, estar fazendo essa parceria com um dos maiores músicos e produtores do Brasil.

E vocês têm muitas diferenças. O Kassin é mais velho, produtor de artistas do mainstream, um cara da classe média Zona Sul, branco. Você é um cara da favela, gay, negro, outras referências, outra geração. Como é esse encontro e essa troca com alguém que é de outro meio?

Eu acho que essas diferenças acabam sendo meio que complementares. Apesar da gente ter esse background musical e de vivências diferente, quando a gente parou para tocar ideia, a gente viu que tem muita coisa musical em comum. E a nossa onda, especialmente no que tange a coisa do humor, é bastante análogo um ao outro. Eu acho que essa nossa parceria é uma prova do quanto as diferenças podem ser complementares, elas conseguem dialogar e criar coisas bacanas. E é doido, porque quando eu conheci o Kassin, ele já conhecia meu trabalho, e eu o dele. E com cinco minutos de ideia que a gente trocou… É difícil de explicar, foi meio que um amor à primeira vista.

Eu li que você largou um emprego para se dedicar à música. O que você fazia?

Eu era tradutor. E aí começou a se agravar a crise econômica aqui no Brasil. Já estava tentando ser músico há muito tempo. E aí eu pensei: "Mano, eu estou com 33, a idade de Cristo, eu quero transubstanciar também." (risos) E comecei a fazer mil rolês. Fui trabalhar de apresentador de karaokê em Campos (estado do Rio), procurando produtor, falando com várias galeras. Até que eu conheci o Juan Peçanha, lá em Campos, que é um produtor de lá, e ele me ajudou a fazer o "Pagofunk Iluminati". A gente chegou a desenrolar e a trocar uma ideia com a Sony, para fechar o ano deles. Chegou em junho, eu já estava ensandecido, procurei uma distribuidora e soltei em junho e em julho eu já fiz o show de estreia, com o Afrojazz. O Eduardo Santana, que é do grupo, produziu a apresentação. Por acaso o curador do Circo, o Rolinha, passou em frente ao lugar onde estava rolando o show, viu o nome "Pagofunk Iluminati" — ele um show com a Rider, eu toquei junto com o Baco — e rolou, as coisas foram acontecendo.

É verdade que você trabalhou em sauna?

É verdade. Sauna, gerente de motel, concierge de hotel, atendente de telemarketing…

Você teve uma boa parte da vida uma criação dentro da igreja evangélica. E você fala sobre sexo, sexualidade. Como é isso para você hoje? 

Hoje para mim é muito natural, mas até os meus 19 anos eu era bem atormentado com essa coisa da penação eterna, do inferno. Até desconstruir esse pensamento, (entender) que a minha orientação sexual não era algo satânico, não era nada que eu precisasse ficar sofrendo. É complicado, né? Eu me assumi com 12 anos. Isso foi em 1998. Essa coisa da militância do movimento LGBT ainda era uma coisa muito tímida, né? A gente chamava de GLS. E foi fundamental ter ido às primeiras passeatas LGBTs que aconteceram em Copacabana, pequenas, e frequentar boates na Zona Norte, uma espécie de aprendizado com as travestis, essa galera da cena meio que underground mesmo. Foi muito enriquecedor e me fez aprender muito.

Você já era ligado ao rap ou ele veio depois?

Eu era ligado a muita coisa: rap, funk, pagode. Mas exercer mesmo, praticar foi com 30 anos. Eu fui trabalhar em sauna com 21 anos e aí eu namorei com um maluco gringo que era meio que milionário. E aí foi quando eu tive uma vidinha melhor. Por exemplo: eu conheci a Sofia (Vaz), da banda Baleia, que fez um feat comigo, na PUC. Lá, conheci toda uma cena musical, mas foi muito mais ligada à cena indie, de rock, de MPB. Lá, conheci amigos baianos, que me apresentaram ao Caetano. Mas eu sempre frequentei baile de favela, roda de Zona Norte, que é por onde eu circulo mesmo.

O que veio primeiro em termos de música?

Funk, pagode e música evangélica, porque foi a minha criança. Você vivendo nos anos 90 na favela tinha o boom do funk melody, MC Marcinho, das montagens, baile de espuma. Ao mesmo tempo, SPC, Raça Negra. E música evangélica. A minha identidade foi formada nisso, basicamente. E meu pai (que morreu quando Jeza tinha sete anos), que curte Tim Maia, MPB. Funk, samba e pagode tiveram caráter pedagógico na minha vida para eu perceber outras coisas.

Eu já vi você falando que Oscar Wilde é uma influência, você cita Bauman em música. Essas referências mais intelectualizadas, isso vem da época da PUC? De onde isso vem para o seu trabalho?

A minha mãe, apesar da gente ser bem fodido, ela sempre me incentivou muito à leitura. Antes de eu fazer faculdade, já tinha um background literário. Eu fiz parte de uma ONG chamada São Martinho, voltada para adolescentes em situação de risco. E aí eu ganhei bolsa para estudar inglês, espanhol. E tinha muitos professores que me incentivavam à leitura. Por exemplo, o Oscar Wilde foi no curso de inglês. E aí eu ficava: 'Poxa, quero aprender, quero saber qual é.' E aí tinha vestibular também. Eu tinha muito na minha cabeça que eu precisava fazer faculdade, porque ninguém na minha família tinha feito. Acho que minha mãe aproveitava esse meu ímpeto de leitura e me dava vários livros. Eu me lembro que muita coisa canônica que eu fui ver na faculdade eu já tinha lido para caralho. A faculdade só serviu para reforçar essa coisa de teoria formal. Acho que serviu muito mais para eu ter o diploma do que para, sei lá, formação de caráter.

Apesar de ter influências das mais diversas na sua música, você é um artista identificado com o rap. Como você acabou se envolvendo mais com o rap e com a cena dele?

Eu acho que você morando no Rio de Janeiro em favela nos anos 90, o funk, Racionais, o boom, a Golden Era do rap, acho que isso já estava inserido nas minhas referências musicais. Por exemplo, já me disseram: "Ah, você fala que faz rap mas ninguém nunca te viu em batalha ou rinha." Mas é preciso também contextualizar que até pouco tempo, até o Rico Dalasam aparecer como um dos primeiros rappers assumidamente gays do Brasil, o rap tinha um clima meio hostil tanto para mulher como para pessoa LGBT. O meu trabalho, o do Rico, o do Hiran, e agora a Linn da Quebrada, a Monna Brutal, um monte de gente quebrando esse paradigma é uma coisa que causa um certo estranhamento ainda. Eu faço rap como qualquer outro maluco aí e dialogo com outras vertentes musicais, mas isso não é exclusivo meu. Você vai escutar por exemplo o Filipe Ret, ou o Baco, ou o BK, os caras também estão numa transdisciplinaridade musical que está além do rap. Eu não sei, ainda acho que, apesar de ter toda essa visibilidade para as figuras LGBTs que estão inseridas nesse nicho musical, ainda existe um pouco de resistência, falta mais inclusão. Porque visibilidade… De que adianta as pessoas só lembrarem que um monte de gente existe só quando está próximo, por exemplo agora da Revolta de Stonewall? Isso é uma coisa que está sendo mais combatido, mas discutido agora, mas acho que precisa de muito mais inclusão, porque ainda é uma visibilidade muito ínfima. É importante que as pessoas vejam isso e parem de olhar torto. A gente está fazendo o corre como qualquer pessoa, mano. O sol precisa brilhar para todo mundo (referência à faixa "Pedra do Sal", do EP "JezaKassin").

Hoje temos vários artistas LGBTs na cena.

Há sete anos atrás não tinha ninguém assumidamente gay fazendo isso.

Você usa pajubá nas suas letras, nas suas entrevistas. Outros rappers LGBT também fazem isso. Acha que isso é importante para vocês marcarem posição?

Eu acho superimportante, inclusive eu acho uma grande bobeira. Não quero apontar para ninguém, óbvio, eu acho que cada um tem que ter a sua individualidade respeitada. Mas eu não tenho o menor problema em ter meu nome associado, "ah, o artista LGBT". Sim. Primeiro, porque eu sou LGBT, eu sou gay, nunca tive problema com isso. Acho que, se for para uma boa causa, por que não? A minha pontuação é que é uma faca de dois gumes: se por um lado é bom, porque você está dando visibilidade à causa, à individualidade de milhões de pessoas, por outro lado você acaba botando numa redoma, etiquetado, numa tag de "artista LGBT". Você faz uma playlist de Dia do Orgulho LGBT. Num contexto que deixa a gente no gueto, sabe? Por que as pessoas não viram e falam para essa galera que já está em evidência no rap, os homens héteros: "o rapper hétero Fulano de Tal"? Essa é uma coisa que é meio bizarra, mas eu acredito que a gente precisa resistir e continuar lutando e gritando e tomando mais espaço para que as coisas melhorem. Para que as LGBTs do futuro sejam muito mais doidas que a gente, gritem muito mais.

Você é um artista negro, gay, da favela. Que preconceito você acha que vem primeiro, que você sente primeiro?

Olha… Eu nunca tentei colocar num ranking, não, porque eu acho que as três coisas me deixam… Eu já sofri e sofro até hoje com isso. Vou até sair do contexto da música, porque eu acho que quem está no meio musical tende a ter uma mentalidade mais aberta. Mas por exemplo, quando eu era concierge de hotel: eu era a pessoa de pele mais escura trabalhando no lobby. Tinha um monte de bicha, mas todo mundo tinha que ficar muito travada. E quem morava em lugares de risco, quando viam na entrevista de emprego, normalmente não era contratado. Então, estruturalmente, eu acho que os três lados. Talvez por ser gay mais tarde, porque pobre e preto já era um estigma que eu nasci com essa porra. Agora, até entender a minha orientação talvez um pouco mais tardiamente. Mas as três formas afetaram e me afetam até hoje com a mesma violência.

Você mora onde hoje?

Eu moro em Campo Grande, na Estrada da Posse, do funk, sabe? "(cantarola) Porque eu moro na Estrada da Posse". Eu queria muito morar na Pedreira, tenho família, amigos lá. Mas é papo de você dar um Google e entender como é que está a situação lá. Eu sempre faço post nas minhas redes sociais de denúncia por impunidade policial. Costa Barros é o segundo pior IDH do Rio de Janeiro. As incursões policiais lá são uma coisa muito doida. E porra, eu já perdi emprego porque não estava conseguindo sair de casa porque o caveirão ia fazer ação lá segunda-feira de manhã e era foda, sabe? Eu fico bastante triste com isso. Inclusive tem gente que me pergunta: "Mas por que você Jeza da Pedra? Por que você não tira a Pedra?". Não, porque para mim é muito importante que a comunidade onde eu nasci tenha algum representante. Nunca conheci nenhum artista lá da Pedreira. E eu falo com o maior orgulho, faço questão de estar sempre sublinhando isso, porque é muito importante, é onde eu nasci, fui criado, os meus amigos estão lá até hoje, para mim é missão mostrar para as pessoas que elas podem contornar essa realidade violenta e triste através da arte.

Até uma certa idade, você frequentou a igreja evangélica. Tem religião hoje?

Eu acho que eu sou gnóstico agora (risos). Acho que você deve ter visto muitas referências ligadas ao candomblé nas minhas músicas. Eu acho que eu não tenho uma religião, mas eu me ligo bastante em religiões de matriz africana, vou em umbanda, frequento terreiros de candomblé, mas eu acho que eu sou espiritualizado, mas não tenho uma religião em si. Mas acredito nos mistérios.

No ano passado, você fez seus primeiros shows internacionais, na Alemanha. Como foi a experiência?

Nossa, foi bem louco, foi do caralho. Um produtor de lá curtia meu trabalho e me convidou para fazer duas apresentações lá. Ele já tinha levado a MC Carol e a Linn, e aí depois me chamou para participar de um evento que ele produz lá, que se chama Favela Gay. E aí os organizadores da parada LGBT de Colônia, que é a segunda maior da Europa, também entraram em contato para que eu me apresentasse, foi bem legal. Imagina, com um ano que eu tinha soltado meu trabalho de estreia! Pô, eu fiquei feliz para caralho e a meta agora é Osaka, no Japão (risos).

Desde quando você faz música?

Eu já tive banda de rock e de pagode durante a adolescência. Por exemplo, tenho músicas que estou soltando agora que fiz antes do "Pagofunk Iluminati". Porque eu escrevia — escrevo, na verdade, tenho pretensões editoriais, só estou esperando a oportunidade certa de soltar alguma coisa. É aquilo que eu te falei: a música e a literatura já estavam enraizadas desde a minha infância/adolescência. Mas profissionalmente, "agora eu vou escrever para produzir tal coisa" foi agora, com 30 anos já. Eu jamais imaginei que eu ia ter esse ímpeto largar um trabalho para me dedicar a essa parada de música porque é perrengue para caralho. Antigamente eu estava infeliz, mas tinha um trabalho das oito às cinco que garantia a minha subsistência, mas não me deixava feliz. Hoje em dia, eu garanto a minha subsistência fazendo uma milhão de coisas, mas estou correndo atrás do meu sonho e acho que, mesmo de uma maneira muito tímida, eu estou conseguindo realizá-lo. E, sinceramente, eu espero de viver disso.

É que eu ia dizer: desde que você lançou o EP, as coisas foram meio rápido. Como você se sente agora, nesse ponto da carreira, olhando para tudo que aconteceu até agora?

Eu me sinto muito grato e feliz, porque eu vi que valeu a pena ter passado por todas essas dificuldades. Porque até hoje: o estúdio do Kassin é na Zona Sul e, para eu chegar aqui, eu gasto três horas. Um dia fora é papo de passagem, mais alimentação, papo de mais de 20 conto. Isso aqui no Rio, imagina, tem outros parceiros que estão na Bahia, em São Paulo… Mais especificamente aqui no Rio, esse apartheid geográfico, esse sistema de transporte público escroto que não funciona, isso dificulta minha vida para caralho. Se eu for pensar que, em três anos, apesar de eu ainda estar aí, aos trancos e barrancos, lutando para ter meu lugar ao sol, para ser bookado em casas de show, coisa e tal, é muito gratificante. Mas acho que é só começo, ainda tem muita coisa aí para caminhar e para conquistar.

E você já tem um novo trabalho solo na manga, além do disco com o Kassin, né?

Eu estou produzindo um EP, vou soltar agora no segundo semestre. Estou fazendo um crowdfunding, para que a galera me ajude. O trampo com o Kassin está sendo feito em parceria e estou no amor, está tudo muito maravilhoso. Mas esse outro trampo eu estou fazendo por conta própria, requer pagar estúdio, produção, cuidar da questão audiovisual, toda essa coisa. Espero sinceramente que eu atinja a meta. Se não rolar, também, foda-se, eu vou fazer de qualquer jeito, eu vou soltar no segundo semestre na marra. A gente só trabalha com o impossível (risos).

Vai lá:
Nação Zumbi + JezaKassin
Quando: Sexta-feira, 28 de junho, às 22h (abertura dos portões)
Onde: Circo Voador. Rua dos Arcos, s/nº
Quanto: R$ 50 (com 1kg de alimento, 1º lote) a R$ 120 (inteira, 2º lote)

Sobre a autora

Kamille Viola é jornalista, com passagens e colaborações por veículos como O Dia, O Globo, O Estado de S. Paulo, Billboard Brasil, Bizz e Canal Futura, entre outros. Nascida e criada no Rio, graças ao jornalismo já andou pelos mais diversos cantos da cidade.

Sobre o blog

Do pé-sujo mais tradicional ao mais novo (e interessante) restaurante moderninho, do melhor show da semana à festa mais comentada, este blog busca fazer jus à principal paixão do carioca: a rua.

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