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Luedji Luna: 'Sou uma mulher negra no mundo, e isso está na minha música'

Kamille Viola

07/09/2018 17h20

Luedji Luna é atração do Sai da Rede. Foto: divulgação

Foi depois de deixar sua Salvador natal para tentar a sorte na carreira musical em São Paulo que a cantora e compositora Luedji Luna começou a gestar o disco "Um corpo no mundo", lançado no ano passado, que figurou em listas de melhores do ano e a levou para diversos cantos do país. Luedji tem viajado o o Brasil para apresentações solo ou em festivais: só no Rio de Janeiro ela se apresenta pela terceira vez este ano, no sábado, como uma das atrações do Sai da Rede, no Centro Cultural Banco do Brasil. Enquanto colhe os frutos do trabalho de estreia, ela continua compondo, sobretudo como letrista, e já pensa em um novo disco ("mas sem pressa de colocar no mundo") — o repertório vem sendo testado no projeto "Bom Mesmo é Estar Debaixo D'Água", série de shows que vem realizando ao lado do baixista François Mukeka, o mesmo de seu primeiro álbum.

"A primeira vez no Rio, no Galpão das Artes, foi uma surpresa, acho que foi meu público mais caloroso da vida (risos). E aí depois eu voltei, pela segunda vez, no Circo Voador (abrindo para o grupo paulista Bixiga 70), que é uma casa supertradicional, eu tava num momento especial da carreira, a gente passou por Salvador, que é minha terra natal, depois por algumas cidade do Nordeste, Minas e sempre com a receptividade muito boa, o público comparecendo, cantando as músicas. Aí fechar no Rio de Janeiro, no Circo Voador lotado, com o público cantando todas as músicas e ainda mais alto do que a primeira vez que eu fui aí ao Rio de Janeiro, essa foi a confirmação de que realmente os cariocas são bem quentes, bem calorosos, fervorosos. Eu fiquei muito impactada mesmo com o show. Foi tão bom que eu fui sete da manhã, não queria que a noite terminasse, foi muito lindo", comemora ela.

Luedji é parte de uma geração da música baiana para o qual os holofotes do país estão cada vez mais voltados — só no Sai da Rede, além dela, estão o rapper Baco Exu do Blues e o grupo Àttøøxxá, e nomes como Baiana System (o mais famoso deles) e Xenia França têm figurado na programação de festivais Brasil afora. Ela frisa, no entanto, que a Bahia, e principalmente Salvador, não vive um momento. "Esses artistas sempre estiveram lá, atuando, Salvador sempre foi plural, sempre foi rica, sempre foi isso tudo que ta está todo mundo vendo hoje. O que mudou foi o olhar de fora, esse olhar sobre essa outra Bahia, que sempre esteve lá, trabalhando, tentando se viabilizar e se visibilizar, e que era um pouco apagada por uma única cena, uma unica narrativa que era o axé", defende. "A cena alternativa da Bahia, a música independente, sempre foi  muito forte. Só que hoje a gente está conseguindo ter mais visibilidade. Acho isso muito positivo, muito salutar, mas tomando esse cuidado de [saber] que não é algo passageiro, um movimento que vai passar. É algo que sempre esteve na Bahia, desde Gilberto Gil, desde Tom Zé, desde a velha guarda", frisa.

Apesar de estar inserida nessa cena, Luedji Luna precisou deixar a Bahia, há três anos, para gestar o trabalho que a revelou para o Brasil. Foi a partir da música que dá nome ao álbum que ela criou o conceito que perpassa todo o disco. "'Um corpo no mundo', ele só nasceu porque eu saí de Salvador e fui para São Paulo. É uma canção que dá norte a todo o disco, que nasce em São Paulo a partir desse encontro, das dinâmicas raciais da cidade, da minha solidão na cidade, que me fez refletir sobre a minha solidão enquanto corpo negro no Brasil, a partir do meu encontro com a imigração africana na cidade que me fez lembrar de uma saudade ancestral dessa África que eu nunca cheguei a conhecer. Essa reflexão não viria, ou talvez demorasse a vir, se eu não tivesse saído de Salvador, da minha zona de conforto, da minha terra, onde todo mundo parece comigo, e ido para São Paulo", analisa ela, que incluiu no repertório duas canções antigas: "Dentro ali" e "Asas".

A sonoridade do disco, que tem influência africana mas mescla referências diversas, como o jazz, o blues e o reggae, tem a ver também com a formação da banda que gravou com a cantora: o queniano Kato Change (guitarras), o paulista criado na Bahia e filho de congoleses François Muleka (violão), o cubano Aniel Somellian (baixo elétrico e acústico), o baiano Rudson Daniel de Salvador (percussão) e o sueco radicado na Bahia Sebastian Notini (percussão), também produtor do trabalho. "A maior influência desse encontro multicultural sensacional foi no som, e fazia todo sentido, porque eu to falando de não lugar, de não pertencimento, o som não podia ter um recorte tão demarcado de território, não podia ser uma música brasileira, americana, africana, baiana, tem que ser música do mundo, né? Eles ficaram livres pra criar e, dentro dessa liberdade, imprimiram a identidade de cada um deles", explica ela.

Luedji também é parte de uma cena em que se destacam cantoras e compositoras negras, em contraponto ao papel de intérprete, que era o dominante entre as mulheres na música brasileira no passado. Mais do que isso: é uma das fundadoras da mostra Palavra Preta, que reúne compositoras e poetas negras de todo o país. "Eu acho que é providencial que a gente esteja construindo essa narrativa na música popular brasileira, que não seja só porta-voz de uma mensagem de outro alguém, e geralmente esse alguém é um homem branco compositor, mas a gente construir esse discurso de que nós somos capazes de ser porta-vozes de nós mesmas. E, quando a gente fala de mulheres pretas, que são as vozes mais apagadas socialmente, eu acho muito simbólico, muito importante. Acho que é supersubversivo e urgente e necessário isso que está acontecendo agora. É como provar que nós também somos capazes de produzir discurso, saber, episteme, e ser porta-vozes e nós mesmas, falar por nós mesmas", defende. "Que é o que eu faço questão de fazer, eu só canto a mim ou outras compositoras. No disco tem uma exceção, que é a composição de meu pai (Orlando Santa Rita) com Cal Ribeiro. No mais, são são composições minhas, são composições minhas em parceria e a composição de uma outra compositora preta, que é Tatiana Nascimento, 'Iodo + Now Frágil'."

Ela vê a atual força da militância de mulheres negras no país como a continuidade de um processo que se iniciou há muito tempo, desde o primeiro navio que chegou. "Existiam mulheres negras ali resistindo à opressão, ao estupro, à violência, à escravidão. Conseguindo se alforriar, conseguindo alforriar outros irmãos, empreendendo — o que é a baiana do acarajé senão uma empresa, que dá autonomia para aquela mulher e para aquela família preta? Várias tecnologias que a gente conseguiu durante todos esses mais de 400 anos de opressão, e estamos aí. Depois veio o movimento negro, os primeiros pretos que conseguiram entrar na universidade pública — meu pai e minha mãe parte dessa geração —, construindo o movimento negro, junto a outros movimentos. O que está acontecendo hoje no Brasil e esses avanços que a gente tem são resultado de muita força", analisa.

Seguir em frente com essa luta, ela conta, é uma necessidade. "Porque continuamos morrendo, continuamos sendo a população mais vulnerável nesse país, mesmo sendo a maioria. A gente não se vê representar na mídia, na política e, por conta disso, eu poderia querer falar de borboletas e de flores, mas vai ser sempre com esse olhar e essa perspectiva de um corpo que foi atravessado pela violência e pelo racismo", desabafa. "Eu poderia não querer falar disso — na real, eu não acho que é legal estando falando disso em toda entrevista —, mas eu sou essa mulher negra no mundo, e esse mundo é racista, é homofóbico, transfóbico, machista, e essas violências me atravessam e afetam diretamente o modo como eu penso, como eu sinto, como eu me relaciono com meus pais, com meus amigos, com meus afetos. Eu não tenho como negar isso, e isso inevitavelmente vai para a minha música, está na minha música."

Programação do Sai da Rede:

Sexta, 7 de setembro:
Baco Exu do Blues, Àttøøxxá e João Brasil

Sábado, 8 de setembro:
Plutão já foi Planeta, Luedji Luna e Almério

Vai lá:
Sai da Rede
Quando: Sexta e sábado, 7 e 8 de setembro, às 21h
Onde: CCBB Rio de Janeiro. Rua Primeiro de Março, 66, Centro – Tel: (21) 3808-2020
Quanto: R$ 15 (meia-entrada) e R$ 30

Sobre a autora

Kamille Viola é jornalista, com passagens e colaborações por veículos como O Dia, O Globo, O Estado de S. Paulo, Billboard Brasil, Bizz e Canal Futura, entre outros. Nascida e criada no Rio, graças ao jornalismo já andou pelos mais diversos cantos da cidade.

Sobre o blog

Do pé-sujo mais tradicional ao mais novo (e interessante) restaurante moderninho, do melhor show da semana à festa mais comentada, este blog busca fazer jus à principal paixão do carioca: a rua.

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