'No desenvolvimento do país, o Nordeste ficou com migalhas', diz Afrocidade
Kamille Viola
23/11/2019 14h25
Afrocidade se apresenta pela primeira vez no Rio. Foto: Rafael Kent/divulgação
Pela primeira vez no Rio, onde se apresenta no evento Madrugada no Centro, o Afrocidade é hoje um dos destaques da cena musical baiana que vem conquistando o país. O grupo, formado em Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador, surgiu a partir do projeto Cidade do Saber, no qual o baterista e diretor musical da banda, Eric Mazzone, era arte-educador. O som é uma mistura de estilos de raiz negra: pagode baiano, arrocha, dub, reggae, ragga e afrobeat.
Com apenas um EP de seis músicas lançado, "Cabeça de tambor", de 2016, eles preparam o primeiro álbum, previsto para o primeiro semestre de 2020. A produção é de Mahal Pitta, conhecido pelo trabalho com o BaianaSystem. "Ele trouxe referências muito grandes, de a gente pode voltar para a África, voltar de onde a gente veio para poder entender todo esse processo de dentro para fora, esse processo intimista de humanidade", comenta o vocalista José Macedo, que forma o grupo ao lado de Eric Mazzone (bateria e direção musical), Rafael Lima (percussão), Fernanda Maia (percussão), Douglas Santos (percussão), Marley Lima (baixo), Sulivan Nunes (teclado) e Fal Silva (Guitarra). O trio de sopro é formado por músicos convidados. O grupo ainda conta com dois bailarinos, Guto Cabral e Deivite Marcel.
O Madrugada no Centro traz edição inspirada na exposição sobre o Egito Antigo em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil. A civilização negra daquela região é uma das inspirações do afrofuturismo e é citada na música baiana desde o samba reggae. A começa com a festa Disritmia, que também encerra o evento. Em seguida, o show do grupo baiano, previsto para a meia-noite. Depois é a vez do bloco Agytoê.
O Afrocidade faz parte de um momento em que vários artistas da Bahia, de estilos diferentes, estão sendo reconhecido no país inteiro. Como você vê essa cena?
É um momento em que a gente está observando essa ressignificação da musicalidade baiana, independentemente do gênero, como você falou. É uma musicalidade preta baiana, de fato. Porque vivemos durante muito tempo um monopólio da indústria fonográfica. Na época da Tropicália, havia grandes artistas que nos representavam, que viveram a ditadura, a censura das rádios e da televisão, em que eles traçavam outras estratégias. Eu enxergo as coisas hoje de uma forma muito mais positiva. Essa ressignificação da música preta, tendo esse viés dos meios de comunicação independentes — o sistema tem sua estratégia branca, de elite, e a gente vai tipo Tartaruga Ninja ali, pelo subterrâneo. Hoje temos uma voz de representatividade muito maior, após a queda da indústria da axé music, que foi uma grande apropriação da música preta do Recôncavo Baiano. Muitos artistas travaram uma guerra lá atrás para que isso acontecesse. É gratificante a gente dar continuidade a uma história de guerreiros que conseguiram quebrar isso com a musicalidade independente preta. É como se a gente estivesse pegando um cajado e dando seguimento a isso. Na axé music, a indústria se apropriou muito da musicalidade preta, com a percussão, inclusive muitos percussionistas maravilhosos daquela época vivem no anonimato hoje. Ela já seguiu outra estratégia, está lá no sertanejo. Mas essa queda foi necessária. Essa cena hoje, de Luedji, de Xenia, de Baco, do Àttøøxxá, da gente, BaianaSystem é ressignificação de luta mesmo, de guerreiros que fizeram isso lá atrás. O pagodão hoje é a cena que representa a voz da favela na Bahia, em Salvador e Região Metropolitana. Uma cena preta que sofreu muito por causa da indústria do axé. É o cotidiano da periferia, eles falam muito de sexualidade, independentemente de gênero, como uma fonte de poder, sem aquela visão pejorativa que o sistema elitista colocava da dançarina ou do dançarino do pagode. Hoje a gente vê essas expressões como uma fonte de libertação: a nossa dança do pagodão. É um respiro mesmo do cotidiano que a gente vive. Não tem como falar de uma coisa só, tudo está interligado. As religiões de matriz africana, que são frutos do nosso cotidiano, e os orixás são reverenciados através do toque. Ele desce para reverenciar o universo e a natureza como uma conexão só. E a nossa música é essa libertação. Eu enxergo tudo isso como uma contemplação divina mesmo do que está acontecendo. Ver essa música preta baiana hoje tomando um outro lugar do que foi imposto para a gente. Estamos invadindo os espaços com o que é nosso de direito: a nossa fala, a nossa representatividade, a nossa vivência cotidiana, as nossas mídias independentes tomando poder.
Para vocês, sendo de Camaçari e não de Salvador, foi mais difícil, tem sido?
Muito. A própria cena da região, da metrópole de Salvador, sempre monopolizou o espaço. e Quando um ou dois, três artistas de Salvador conseguiram ter um espaço, a Região Metropolitana não invadia a cena. "Olha a gente já tem dois ou três artistas de Salvador aqui, agora ninguém passa." Hoje a gente está conquistando um marco na nossa história, da música brasileira e baiana, muito grande. A gente é a primeira banda da Região Metropolitana a participar do Radioca (importante festival que acontece em Salvador), por exemplo. É muito mais do que isso: a gente vive numa cidade que é tida como interior, sendo que é do lado de Salvador. É a 40 minutos de Salvador, 40 quilômetros. Uma cidade rica. Tem a visão de fora de que é uma cidade industrial, que de que ela só existe a partir do polo petroquímico. Mas o polo tem 40 anos e a cidade tem 260 anos. Antes desses 40, aquilo já existia, já havia uma vida lá, com uma musicalidade de quilombo. Para nós, ficou muito mais fácil fazer toda essa história, mesmo nesse processo de século 21 de desenvolvimento urbano, porque Camaçari tem uma existência quilombola muito grande, o maior número de quilombos rurais existentes da Região Metropolitana de Salvador, e expansão territorial muito maior que Salvador, com uma zona urbana menor. Mas existe o desenvolvimento da cidade ali, de coisas que sempre aconteceram, na música, no skate, na arte de rua, e sempre existiu o anonimato. Eu travei duas vivências: uma com o hip hop, antes do Afrocidade, que é a minha primeira experiência com banda. Fui altas vezes sabotado. Eu ia participar de batalha de MC em Salvador, chegar em final, não passar, e as pessoas falarem: "Velho, você ganhou aquela batalha." Então tem essa parada, é como se fosse um reflexo das migalhas que sobraram para a gente disputar, do que sobrou no Nordeste. Falo isso com um contexto social: seja na música, na arte, no meio de trabalho, no meio social, no desenvolvimento do país, o Nordeste ficou com as migalhas. E aí esse pouco que sobra para tanta gente, nós acabamos não se unindo, aprendemos isso. Então, para gente sair, é muito mais difícil, nós sentimos isso na pele.
Você estava falando da questão da sua vivência anterior, no hip hop. Hoje o rap é um estilo que está fazendo bastante sucesso, é um estilo cada vez mais escutado. Como você vê também esse momento do rap, no Brasil e no geral?
Essa pergunta é bem inspiradora para mim, porque o rap é uma música que surgiu do movimento hip hop ali do Brooklyn, em Nova York, porque necessitava ter uma instituição política que falasse a língua da comunidade. E era uma música preta, no funk, e, com a linguagem afrofuturista, surgiu a musicalidade do rap, o movimento hip hop e sua visão, e isso se espalhou pra todo mundo, sendo a música mais tocada nas rádios e nos veículos independentes de comunicação. Eu enxergo isso como uma nova linguagem para que a gente entenda o que é o nosso rap, o que é o rap brasileiro. Nessa questão internacional, a gente vê que todo o mundo — na África tem a galera que faz um rap com as suas vivências, em vários países, tem o rap cubano que traz a periferia, os Orishas, você vê que o rap de determinados lugares que tem o seu toque especial da música popular que tem em cada lugar. O nosso rap é isso, é o nosso pagodão, é a linguagem da periferia hoje, falando no rap no contexto do baiano, né. Eu enxergo nessa forma. O Baco, em um momento que chegou e traz essa identidade na musicalidade dele. E a evolução do trap que está sendo muito importante para se entender essa sintetização, porque o rap veio lá desde o miami bass, que veio antes, aí veio o boombap, nos anos 90, depois os anos 200 e hoje está vivendo a era do trap. As celas do trap dialogam muito com as do pagodão, os tempos, é diálogo, cotidiano mesmo que a comunidade respira e como se comunica. O rap é isso. Então não consigo colocar essa distância entre as musicalidades populares e o rap está inserido no meio de todas essas linguagens populares. Essa consegue comunicar com todas essas linguagens populares que existem no mundo. Ele está presente como veículo de comunicação, está em Cuba com Orishas, tocando santeria com rap. A gente está aqui tocando a macumba com rap, os caras lá denominaram o jazz, o soul, a música preta que eles mais fazem no mundo e surgiu o rap, a linguagem falada. E aqui a gente consegue trazer o rap dentro da musicalidade que a gente tem. O rap é uma parada muito foda. Hoje ele conseguiu se estabelecer no mundo e, entre todas as linguagens populares que existem, ele está presente também, nesse processo de ressignificação. Nação Zumbi mesmo tem uma história muito louca comigo. Quando eu comecei a fazer som no Afrocidade, eu vinha da vivência do rap gringo, norte-americano, que vinha de fora para a gente. Participava de um coletivo de rap com uns amigos, e a nossa influência era essa, e ele acabou. Com o Afrocidade, eu entrei num outro universo. Eric, que é nosso diretor musical, vinha mostrando um outro leque. Só que, até pelo meu processo de insegurança — eu sou um homem preto, a gente tem esse processo —, passei por um início de incerteza. Eu ficava meio naquela: "Será que eu estou no caminho certo? Será que essa parada de misturar o rap com pagode, é isso?". Até que eu assisti um documentário sobre Chico Science que rodou a minha chave. Lá atrás, ele já tinha essa visão. Antes de Nação Zumbi, eles tinham um grupo de rap. O que eles ouviam? Beastie Boys, toda aquela musicalidade que vinha de fora. E aí eles viram a necessidade de falar: "Velho, vamos criar o nosso rap?". Como eu interpretei isso? Eles aí pegaram toda aquela musicalidade do coco, do maracatu, e surgiu o movimento mangue bit. Por isso que vem aquela ideia: antena parabólica surgindo da lama, que é o que a gente pega da nossa realidade aqui e vai levar para o mundo, não o que o mundo trás para a gente. Quando eu entendi isso, falei: "Velho, é isso! Meu rap é o pagodão, é o samba de roda, é a macumba que toca aqui." Às vezes eu preciso dizer essa história, o que eu percorri pela minha vivência. É isso: o rap está presente em todas essas linguagens de música popular. E a nossa música regional e popular é isso, o pagodão, é a levada de percussão, os toques de candomblé. Na linguagem século 21, afrofuturismo, o rap consegue dialogar. Aquela parada cíclica: passado, presente e futuro. Não existe nada se não tiver esse ciclo. A existência humana está presente nele. O universo, a natureza.
Vocês tinham só um EP esse tempo todo de banda e estão fazendo um álbum. Como está sendo? Vocês estão em que fase? Para quando deve ser o disco?
Está sendo inédito. Vai ser a partir daí é que a gente vai lançar o nosso primeiro disco mesmo. É aquela parada: "Somos o Afrocidade, é isso aí." É afirmar mais aquilo que a gente é. O processo do EP, quando ele surgiu lá em 2016, a gente ganhou o edital Calendário das Artes da Funceb. Naquele momento, era o essencial, o Afrocidade estava nascendo, o nosso som estava saindo mesmo. Então a gente não tinha como gravar um disco naquela época. O que a gente tinha para mostrar para o mundo era aquilo. De lá para cá, a gente amadureceu bastante musicalmente, nosso discurso, contexto, representatividade, afirmações de pertencimento, temos mais composições, coisas novas, nosso repertório aumentou, o nosso show, a dinâmica, tudo isso veio amadurecendo. A gente se sente muito mais forte. Hoje, é o momento de fato de nós gravarmos esse disco. Estamos com composições que não tínhamos gravado mas que tocamos no Showlivre, que estão no Spotify, alguns desses conteúdos estão no disco, com outras coisas inéditas e aí vai ficar de surpresa mesmo. Mas está vindo com aquele carinho, aquele tesão de querer colocar mesmo o nosso primeiro filho no mundo mundo e reafirmar. Quem vai vir na produção com a gente, a gente tem a honra de quem vai estar produzindo e dirigindo o nosso disco é o Mahal Pita, que era do BaianaSystem, Tive algumas vivências com ele há uns tempos, ouvindo bastante o que ele tem para dizer, foi muito enriquecedor, de ele trazer referências que a gente vai poder usar pro disco, e aí também levar referências para entender qual é o processo. Essa troca que ele teve comigo, vai ter com várias pessoas do grupo, para entender o que pulsa na vivência de cada um musicalmente, o que referenciou cada artista. Porque cada músico do Afrocidade traz consigo uma verdade, e essas verdades se multiplicam. Nanã presidiu a verdade. O mundo só é uma realidade infinitas verdades, acredito que cada um tenha a sua. É cíclica assim, não é parada imposta pelo eurocentrismo, de que existe só uma verdade. A gente está vindo justamente para mostrar isso com a nossa realidade, com a nossa música. Ele trouxe referências muito grandes, de a gente pode voltar para a África, voltar de onde a gente veio para poder entender todo esse processo de dentro para fora, esse processo intimista de humanidade. A gente tem uma vivência muito grande com o samba reggae na nossa música, aquela linguagem urbana, dele surgiu o pagodão que a gente faz, que é o groove arrastado. É uma evolução sintetizada disso, e esses ritmos foram os que vieram dos negros da época da Revolta dos Malês, negros muçulmanos. Então a gente vai passar por esse processo de profundidade mesmo, histórico, que é tentar trazer o que é o Afrocidade agora. Estamos em pré-produção, já gravamos umas vozes-guia em algumas faixas, coisas assim.
E como é se apresentar no Rio, para vocês?
A gente está ansiosão, primeira vez aí no Rio, na Madrugada no Centro. A gente está daquele jeito!
Vai lá:
Madrugada no Centro
Quando: Sábado, 23 de novembro, das 22h às 4h
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil. Rua Primeiro de Março, 66, Centro
Quanto: R$ 15 (meia-entrada) e R$ 30 (inteira)
Sobre a autora
Kamille Viola é jornalista, com passagens e colaborações por veículos como O Dia, O Globo, O Estado de S. Paulo, Billboard Brasil, Bizz e Canal Futura, entre outros. Nascida e criada no Rio, graças ao jornalismo já andou pelos mais diversos cantos da cidade.
Sobre o blog
Do pé-sujo mais tradicional ao mais novo (e interessante) restaurante moderninho, do melhor show da semana à festa mais comentada, este blog busca fazer jus à principal paixão do carioca: a rua.