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'O afrofuturismo é também uma atitude política', diz Jonathan Ferr

Kamille Viola

16/11/2019 08h30

Jonathan Ferr faz show gratuito domingo. Foto: reprodução

Desde que lançou o disco "Trilogia do amor", em abril deste ano, o pianista Jonathan Ferr tem sido presença cada vez mais frequente em festivais e eventos importantes pelo país. O maior deles, sem dúvida, foi o Rock in Rio, onde se apresentou no Espaço Favela. Neste domingo, ele faz show na Praça do Ó, na Barra, como parte do evento de skate e cultura urbana Oi STU Open, ao lado de DJ Tamenpi, Black Alien e DJ Saddam.

Ferr, de 32 anos, aposta na mistura do jazz com estilos como o hip hop e o R&B. Sua ideia é levar o jazz, que muitas vezes seus amigos chamavam de "música de dentista", para cada vez mais perto do povo. Nascido no Morro da Congonha, em Madureira, ele enfrentou muitos obstáculos até conseguir ter uma carreira para chamar de sua. "Escolher tocar piano, para mim, que vim da periferia, foi um desafio que eu trouxe para a minha vida. Hoje eu me sinto realizado, pois outros jovens me escrevem, ou falam comigo no show, dizendo que eu sou uma referência para eles", comemora o artista.

Ele é considerado um dos atuais expoentes brasileiros do afrofuturismo, estética que combina elementos de ficção científica, novas tecnologias e ancestralidade negra. Na música, um dos principais nomes foi o pianista e compositor norte-americano Sun Ra (1914-1993), que misturava em seu trabalho referências à cultura africana antiga, sobretudo do Egito, e a vanguarda da era espacial. Este ano, por sinal, Jonathan Ferr participou de um encontro com a Sun Ra Arkestra, banda que acompanhava o artista. "Para mim, o afrofuturismo, mais do que uma estética visual, filosófica, é também uma atitude política, que visa uma unificação e emancipação do pensamento negro, colocando o negro novamente no seu lugar de destaque, como protagonista de sua própria história", define.

Você cresceu em Madureira, um bairro com uma história que se mistura com a do samba. O que ouvia?
Como fui criado dendro de uma família evangélica, eu ouvia muita música gospel. Meus pais tinham muitos vinis em casa, de bandas e corais, o que me trouxe uma riqueza e diversidade musical. Já na adolescência, me apaixonei pelo rock e passei boa parte deste período tocando em bandas de rock, curiosamente como baixista e guitarrista, apesar de já tocar piano. No entanto, por conta dos vizinhos, eu acabava ouvindo muito funk e hip hop.

Como surgiu seu interesse pelo jazz?
Acredito que tenha sido de uma forma gradual, já que eu me lembro, de quando eu era criança, parar nos sábados à noite, com meus pais, para assistir a um programa chamado "Pianíssimo" (de Pedrinho Mattar, exibido pela Rede Vida, emissora católica), cuja maioria do repertório do apresentador, que tocava piano, era jazz.  Então, acredito que meu interesse tenha despertado nesse momento. Mais conscientemente, conheci o jazz aos 18 anos, quando um professor de música me apresentou o disco "A Love Supreme", de John Coltrane. Após isso, minha escuta mudou para sempre.

O piano no Brasil é um instrumento elitizado. Além disso, temos pouco destaque para os artistas negros do do instrumento: apesar de termos grandes nomes, muitos ainda são pouco conhecidos do grande público, como o próprio Moacir Santos (1926-2006), que é uma grande referência para muitos artistas. Que barreiras enfrentou (ou enfrenta) por ter escolhido o piano?
A primeira dificuldade quando se escolhe tocar piano é no valor que se paga por uma aula de piano, pois não é acessível para quem não tem recursos financeiros. Sem contar o próprio instrumento, que no Brasil ainda é caro para a maioria. Escolher tocar piano, para mim, que vim da periferia, foi um desafio que eu trouxe para a minha vida. Hoje eu me sinto realizado, pois outros jovens me escrevem, ou falam comigo no show, dizendo que eu sou uma referência para eles. Isso, para mim, é a melhor recompensa que o meu trabalho pode me dar.

Em que momento percebeu que o tipo de som que queria fazer era o jazz urbano? Como chegou a ele?
Quando comecei a pensar nesse som, eu tinha 24 anos. Eu queria que a minha geração também ouvisse jazz, porém, toda vez que eu mencionava o tipo de som que eu ouvia, achavam que era música antiga e diziam: "Isso é música do meu avô", "Isso é música de dentista" (risos). Daí resolvi, de forma intuitiva, juntar outras linguagens que eu também gostava, como hip hop, música eletrônica, neo soul, e até um pouco de rock. Sempre pensei na minha música como um som que atravessasse a cidade, da Zona Sul à Zona Norte e da Zona Oeste à Baixada. Assim nasceu a ideia do jazz urbano.

Como conheceu o afrofuturismo? O que acha da expressão dessa estética aqui no Brasil?
A primeira vez que eu ouvi falar sobre afrofuturismo foi em 2016. Comecei, então, a pesquisar do que se tratava esse tema e quem eram os artistas que representavam essa estética. E, claro, como homem negro, me identifiquei muito rápido. Comecei a ler assiduamente tudo que orbitava esse assunto. Até que cheguei a duas grandes referências para mim, que foram  Sun Ra e Kamasi Washington. Este ano tive a oportunidade de abrir o show do Kamasi Washington e conhecer todo o pessoal da Sun Ra Arkestra, num encontro promovido pelo Sesc Pompeia. O meu álbum "Trilogia do amor" nasceu dentro dessa atmosfera de estudo, leituras e pesquisas, que me ajudou a ter uma consciência ancestral ainda maior e me fez gerar o meu filme afrofuturista "A jornada". Para mim, o afrofuturismo mais do que uma estética visual, filosófica, é também uma atitude política, que visa uma unificação e emancipação do pensamento negro, colocando o negro novamente no seu lugar de destaque, como protagonista de sua própria história. O afrofuturismo é um dos muitos pensamentos negros que nos possibilitam a noção de pertencimento e que nos devolvem o lugar de fala.

E como foi a experiência de tocar no Rock in Rio? O que achou das críticas ao Espaço Favela?
Tocar no Rock in Rio foi uma ótima experiência. Foi interessante ver a engrenagem por traz de um evento tão gigante, e ser o único artista de jazz/instrumental do festival. Sobre o Espaço Favela, é sempre importante problematizar as coisas. Quer dizer, tudo é discutível e deve ser debatido. No entanto, acredito que tenha havido interpretações distorcidas do Espaço Favela por falta de conhecimento de quem não entendeu a proposta. Ao mesmo tempo, foi uma importante plataforma para muitos artistas ampliarem sua arte, o que para mim é o mais relevante.  Inclusive, muitos artistas usaram o espaço como protesto para falar de temas relevantes como a violência policial contra a favela. No meu show, por exemplo, eu trouxe à reflexão sobre a morte prematura da juventude negra, que quase sempre acontece de forma violenta dentro de um regime repressor.

Você volta e meia se apresenta em eventos gratuitos, como foi no Rio das Ostras Jazz & Blues Festival, por exemplo, e como vai ser agora no Oi STU Open. Como é a experiência de tocar para os públicos desses shows abertos?
É uma experiência muito boa, pois conversa diretamente com a filosofia da minha música, que é tornar o jazz acessível de ponta a ponta. Gosto de falar que a minha música é "exclusiva para todos". Eventos gratuitos são importantes para democratizar o acesso à arte e a promoção da diversidade artística. Este ano toquei em três eventos gratuitos e que para mim foram marcantes: o Rio das Ostras Jazz & Blues Festival, o Marien Calixte Jazz Music Festival e o Jazz Out Festival. Em todos eles eu fui abraçado pelo público que não conhecia o meu trabalho e que talvez, em outras circunstâncias, não conseguiria estar ali. Sobre o STU, que vai acontecer neste domingo, a expectativa está muito grande.  Primeiro, porque sempre fui fã de skate, e a final do campeonato de skate onde estarão os melhores do mundo. Depois, porque sou fã do DJ Tamenpi, DJ Saddam e Black Alien, e estar no mesmo line up que esses gigantes é a prova que o meu trabalho está no caminho certo.

Você lançou um curta junto do seu álbum. Por que quis apostar no formato? Acha que a música hoje é indissociável da imagem?
Sim. Acho que a música é indissociável da imagem. Sob esse ponto de vista, estamos na geração YouTube. Assim, a imagem torna-se ferramenta para ampliação da experiência sensorial do ouvinte. Quando idealizei o álbum, enquanto trilogia, eu pensava numa extensão audiovisual afrofuturista. Comecei a ideia de forma embrionária, com algo relativamente simples. Logo, ela foi amadurecendo e ampliando até onde eu queria chegar. Convidei a roteirista Kesia Pacheco para desenvolver o argumento que eu tinha, depois a produtora de cinema Erika Cândido e a produtora-executiva Tânia Artur, que me ajudaram a realizar esse trabalho. Assim, juntamos 20 pessoas, majoritariamente negras, para realizar esse curta, em que assinei pela primeira vez a direção. Como resultado, fomos aceitos em todos os festivais de cinema em que formos inscritos, concorremos a melhor filme, melhor trilha ("Luv is the Way", música do álbum) e ganhamos prêmio de melhor figurino.

Tem algum novo lançamento em vista?
Em primeira mão, informo que vou lançar uma faixa em colaboração com dois rappers que admiro muito e que convidei para participar de uma track minha. Vai ser minha primeira love song, com participação de Choice e Nill, O Adotado. Estamos em processo de mixagem e vai vir um trabalho bem bonito ainda este ano.

Vai lá:
STU Open: DJ Tamenpi, Jonathan Ferr, Black Alien e DJ Saddam
Quando: Domingo, a partir das 17h30
Onde: Praça do Ó, Barra da Tijuca
Quanto: Grátis

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Sobre a autora

Kamille Viola é jornalista, com passagens e colaborações por veículos como O Dia, O Globo, O Estado de S. Paulo, Billboard Brasil, Bizz e Canal Futura, entre outros. Nascida e criada no Rio, graças ao jornalismo já andou pelos mais diversos cantos da cidade.

Sobre o blog

Do pé-sujo mais tradicional ao mais novo (e interessante) restaurante moderninho, do melhor show da semana à festa mais comentada, este blog busca fazer jus à principal paixão do carioca: a rua.

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