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Letícia Sabatella: 'A arte é necessária para que a sociedade seja saudável'

Kamille Viola

10/05/2019 15h16

Letícia Sabatella no show 'Caravana Tonteria'. Foto: divulgação

Famosa por seu trabalho como atriz, Letícia Sabatella tem um lado menos conhecido do grande público. O de cantora. Mas não que ela tenha simplesmente decidido 'se arriscar' na música: ela estudou canto, fez parte de um coro e teve uma banda, a Tuba Intimista. Nascida em Minas, ela cresceu em Curitiba, onde seus avós moravam ao lado do Teatro Guaíra — que o avô de Letícia ajudou a construir. Ela achava que enveredaria pelo canto lírico, mas o teatro em sua vida e o lado atriz foi tomando cada vez mais espaço. Há alguns anos, no entanto, retomou a proximidade com a música, e o resultado é o espetáculo "Caravana Tonteria", que apresenta nesta sexta e sábado no Teatro Rival.

Ela conta que o afastamento com esse seu lado aconteceu por uma série de fatores. "Fiquei muito tempo casada numa relação que era até bastante opressora, onde a minha voz ficou bem guardada. E também pela falta de tempo mesmo, pela coisa de atriz, os trabalhos em televisão, em cinema. E depois eu tinha uma filha e envolvimento com a parte social necessária, como uma pessoa de visibilidade, e fiquei meio sem tempo. De vez em quando eu participava de algum show de amigos. Mas uma hora fazer um trabalho mais autoral foi ficando muito necessário", lembra Letícia.

Ela se viu com hipotiroidismo e sentiu que precisava exercitar o uso de sua voz. Começou a registrar algumas coisas em um gravador. Letícia já tinha composto a trilha da peça 'Trágica.3' — na qual interpretava Antígona — ao lado de seu marido, o ator e músico Fernando Alves Pinto, e Marcelo H. O trabalho foi indicado ao Prêmio Shell de Teatro em 2015. O convite para cantar na Virada Cultural foi o estímulo que faltava para montar o espetáculo "Caravana Tonteria", ao lado do multi-instrumentista Fernando Alves Pinto (serrote, trompete, voz e violão), Paulo Braga (piano) e Zéli Silva (contrabaixo), em que Letícia canta oito músicas compostas por ela e clássicos de nomes como Cole Porter, Duke Ellington e Carlos Gardel. O show conta com a direção artística de Arrigo Barnabé, que também participa das apresentações no Rival.

Você vai apresentar o "Caravana Tonteria" no fim de semana. O que veio antes na sua vida, a música ou a atuação?

A música. A vida toda. Da minha família, da minha mãe, minha avó, das cantorias das mulheres de Minas, da cantoria de trabalho, de fazer tudo sempre cantando, sempre foi muito forte. Fui criada do lado do Teatro Guaíra (em Curitiba), que meu avô ajudou a construir. Ele e a minha avó, mãe do meu pai, moravam do lado do teatro, então eu convivi com todos os concertos, e tinha concerto de orquestra todo domingo. Cresci dentro do teatro, então em Curitiba eu cantava no Coral Sinfônico do Paraná, tinha uma banda, que era a Tuba Intimista, participava de um coro cênico, O Abominável Sebastião das Neves, sempre tinha muita presença da música e do teatro também. Eu comecei cantando muito, mas o teatro e a coisa de atriz foram tomando uma proporção grande. Mas a música sempre foi uma base para mim, para a dança, para o teatro, para tudo.

Você em algum momento imaginou que seria cantora de profissão?

Eu cheguei a estudar canto pensando no canto lírico, fui cantora de ópera por um tempo. Mas acho que eu pensava mais porque era uma formação que exigiria muito de mim. Então, em termos de formação, você tem um trabalho de corpo — já dançava, desde os 8 anos balé, aos 16 era bailarina contemporânea já profissional —, mas era uma coisa meio conjunta, as coisas sempre foram meio juntas, o teatro depois disso. Mas eu cheguei a pensar, sim, no canto. O canto lírico, principalmente.

Quando a música acabou voltando? Foi mesmo fazendo trilha? Como você acabou voltando para esse universo, quando isso acabou voltando a ser trabalho?

Ficou muito necessário. Eu fiquei muito tempo casada numa relação que era até bastante opressora, onde a minha voz ficou bem guardada. E também pela falta de tempo mesmo, pela coisa de atriz, os trabalhos em televisão, em cinema. Eram tão fortes, né? E depois eu tinha uma filha (Clara, hoje com 26 anos) e envolvimento com a parte social necessária, como uma pessoa de visibilidade, e fiquei meio sem tempo. Estava uma coisa que de vez em quando eu participava de algum show de amigos. Mas uma hora fazer um trabalho mais autoral foi ficando muito necessário. Tive até um hipotiroidismo que a cura veio através do exercício dessa força, dessa criatividade, disso que eu precisava. E na época eu estava fazendo uma novela — vinha de uma novela atrás da outra, uma série de trabalhos na televisão — comecei a ter muita ideia musical, era um espaço de transcendência no meio do estresse do trabalho. Vinham muitas ideias que eu comecei a registrar num gravadorzinho pequenininho e comecei a desenvolver algumas músicas, e começou… Tem um movimento cultural em Curitiba que é muito forte também, com amigos, saraus na casa de um casal de amigos que são professores e mestre de música, saraus na minha casa… Foi uma retomada. O próprio "Hoje é dia de Maria" (minissérie da Globo de 2005), que foi um trabalho que eu tinha feito, já tinha essa retomada. Então essa pessoa que eu era no início da minha formação voltou totalmente necessária.

E a composição, quando entrou na sua vida? Eu vi que o show tem oito músicas suas. Você já compõe há muito tempo? Como começou?

Veio nesse processo de cura mesmo. De trabalho, de estresse em que eu estava, e vinham as ideias, eu ia gravando. Isso já foi uma necessidade. Já vinham com algumas ideias que fui desenvolvendo. Nunca consegui parar pra fazer só isso, eu ainda não tenho tanto tempo, mas foi uma coisa bem espontânea e aos pouquinhos conseguindo fazer alguns trabalhos.

Isso foi em que ano?

Acho que foi em 2009, 2008. E aí teve "Trágica.3", uma peça em que eu faço Antígona. Eu, o Fernando Alves Pinto e Marcelo H, a gente compôs a trilha sonora também, com muitas canções inspiradas em lamentos, e nos chamaram para a Virada Cultural, que foi onde eu consegui dar o start da Caravana, que já era uma coisa que eu estava desenvolvendo aos poucos com o Paulo, com o Nando e com o Zéli.

E como é você e o Fernando terem uma banda juntos?

O Nando é superparceiro. Ele também é ator, a gente já tinha feito peças junto, eu tinha trabalhado com ele, já era um colega legal, amigo. E é um ótimo parceiro. Acho que o Nando foi fundamental, foi um estímulo para a gente vir com força e coragem de pôr pra fora. Ele me ajudou muito na estruturação da banda. Foi muito urgente e boa a presença dele para isso acontecer. Fundamental.
E o que te inspira na hora de compor, em geral?

Ah, coisas da vida. A ideia musical vem muito espontaneamente. Quando eu vejo, já saiu. As letras são coisas que eu escrevo, que eu consigo dar uma lapidada e formatar numa música. Aí vem tudo mesmo. Situações engraçadas, cenas engraçadas também, varia um pouquinho.

E o Arrigo, vocês já conheciam de Curitiba? Como surgiu do Arrigo trabalhar com você? Aqui no Rio ele vai até participar dos shows.

O Arrigo é uma referência pra gente, uma performance de altíssima qualidade, um compositor extraordinário, um ator, é uma preciosidade um artista como ele. Sempre achei muito impressionante. E a presença dele é incrível, é um selo. A personalidade artística dele é muito interessante. E as músicas são incrivelmente lindas. Joia em música

Vocês se conhecem há muito tempo? Como foi essa aproximação?

Eu já era fã, frequentava o trabalho dele, e ele é amigo de amigos, de Curitiba inclusive, e pude ter acesso a ele principalmente pelo Paulo Braga, que é o nosso pianista, que toca com o Arrigo e grava muitas coisas dele.

E, a partir disso, vocês se conheceram e surgiu a parceria.

Sim. A gente precisava de uma direção musical, e ele acabou entrando nessa direção artística também. A presença dele já era muito legal para nós.

Além disso você acabou de estar no ar em "Órfãos da Terra". Como foi a experiência? Você já tinha feito novela passada em outra cultura, né? Como foi essa experiência agora, de fazer a Soraia?

Foi uma graça esse encontro, novela da Thelma (Guedes) e da Duca (Rachid) com a direção do Gustavo (Fernández). É muito primorosa, é uma novela muito sensível, o tema é muito tocante. Era uma personagem humana, com uma sororidade, um cuidado com as mulheres, uma pessoa muito bonita. Foi um trabalho mais tranquilo.

E você fez o filme 'Happy hour" (também em cartaz). E é curioso porque são personagens bem diferentes, mas têm alguns pontos em comum: a Soraia vive numa sociedade onde a poligamia é aceita, um homem com várias esposas, e o tema do 'Happy hour' é relacionamento aberto. Como é para você viver essas personagens de realidades tão diferentes, cada uma com suas questões, em sua cultura? Como é para você ir de uma para outra e se ver na pele de outras mulheres, vivendo situações diferentes das da sua vida?

Isso é o exercício de ser atriz, né? Entrar nas máscaras e falar de coisas que são universais. De existência plena e amor, de liberdade, são temas universais, tanto de mulher contemporânea como de mulher que vive contemporaneamente valores que são tão arcaicos. Em comum ainda tem a sociedade patriarcal, que perdura pelos séculos, ainda mostrando que o papel da mulher sai da vontade e o desejo masculino o desejo da mulher. Acho que também acaba entrando nessa questão.

No que que você se identifica nessas duas personagens? Tem algo assim delas que você te tocou de alguma forma, que você se sentiu tendo mesmo algo em comum?

Sempre tem alguma coisa ou outra. Essas coisas de partilha das mesmas sedes de poder ser ouvido, de poder ser respeitado no seu limite, de não ser somente um objeto na mão de um desejo de fora. Mas eu sinto muita coisa diferentes também.

Você se considera feminista, imagino.

Sim. Tendo que trabalhar constantemente contra a cultura machista que também projeto em mim. Tenho que estar o tempo inteiro reavaliando minha postura. Nasci e fui criada numa cultura patriarcal, tenho que estar sempre tentando e reavaliando também. Mas me considero feminista, sim.

Porque você é uma pessoa que sempre se posiciona politicamente, em relações a causas, direitos humanos, e você também é muito atacada por isso, a gente vê nas redes sociais. Como você lida com isso? Isso te atinge, você tenta se proteger de alguma forma disso?

Sim. As redes sociais têm um espaço que às vezes vira um ringue. Já tentaram entrar com atitudes autoritárias, já teve ataque de bolsominions. Mas também já diminuiu muito e, ao mesmo tempo eu vi que se posicionar, se colocar, faz também você encontrar seus pares. Eu acho que uma vez que existe e que lá está o exercício de você se colocar é um exercício democrático, acho que ninguém tem que ficar fazendo algum tipo de patrulha violenta e agressiva, a mim não corresponde.

Mas esses ataques costumam extrapolar as redes? Por que a gente vê pessoas, principalmente conhecidas, sendo agredidas em lugares públicos. Você costuma sofrer esse tipo de coisa?

Um episódio que ficou bem famoso, você sabe, que e fui xingada em praça pública, você viu isso (A artista foi xingada em uma passeata pró-impeachment em Curitiba, em 2016).

Se for um episódio que aconteceu há alguns anos, sim.

Então, eu passei por isso.

Mas queria entender se você ainda passa por isso: foi um caso isolado ou é frequente?

Não, não tem acontecido mais, não. Depois eu vi pessoas se aproximarem para me defender, para me ajudar. Foi apenas aquele momento.

A cultura e a arte também têm sofrido muitos ataques aqui no Brasil. Você enquanto artista como tem sentido o impacto disso?

É natural que, na entrada de um governo que propõe ser tão excludente e autoritário, algo que faça o cidadão pensar, transcender, refletir e ter um olhar crítico sobre o que está acontecendo, e que traga uma consciência mais ampla e que não seja simplesmente uma arma e agir pela truculência… A sensibilidade realmente parece que é uma afronta a esse governo. A educação, a inteligência, o raciocínio crítico parece que afrontam o governo que aí está. Então a gente deveria pensar: que governo é esse que foi eleito?

Como é ser artista nesse momento?

É resistir.

É o momento mais difícil que você já viveu para ser artista no Brasil?

Sim, é. É um momento difícil.

E como você acha que esse cenário pode mudar, essa à arte e cultura? O que acredita que pode mudar isso? O que pode ser feito para mudar isso? O que os artistas, por exemplo, podem fazer?

Eu acho que estamos fazendo, estamos investindo, indo às ruas. Eu vejo uma grande mobilização de artistas, de lutar, de dar aos mãos, de estar reivindicando um outro olhar. Mas acho que é uma questão que precisa ter uma visão de toda a sociedade. Por que (a gente) precisa ser uma sociedade que trate bem a sua arte, que dê espaço para que as pessoas se desenvolvam com a arte? Acho depende de todos a gente ser uma sociedade mais artística, mais sensível do que truculenta, armada, violenta. Acho que cabe a todos nós perceber a função da arte, conhecer a medicina que é a arte na sociedade, o quanto que ela traz equilíbrio, de saúde emocional para uma sociedade existente no espaço da arte em exercício, em plena atividade, as pessoas se desenvolvendo e fazendo. Ela se aplica em todo cotidiano de uma pessoa, ela traz leveza, profundidade, consciência, bem-estar, sabedoria, reflexão. A arte é uma expressão da alma de uma sociedade. Ela é absolutamente necessária para que a sociedade seja saudável.

Vai lá:
Caravana Tonteria
Quando: Sexta e sábado (10 e 11 de maio), às 19h30. Abertura da casa: 18h.
Onde: Teatro Rival Petrobras – Rua Álvaro Alvim, 33/37 – Cinelândia
Quanto: R$ 35 a R$ 80

Sobre a autora

Kamille Viola é jornalista, com passagens e colaborações por veículos como O Dia, O Globo, O Estado de S. Paulo, Billboard Brasil, Bizz e Canal Futura, entre outros. Nascida e criada no Rio, graças ao jornalismo já andou pelos mais diversos cantos da cidade.

Sobre o blog

Do pé-sujo mais tradicional ao mais novo (e interessante) restaurante moderninho, do melhor show da semana à festa mais comentada, este blog busca fazer jus à principal paixão do carioca: a rua.

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