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"Nosso disco novo é sobre ser insuficiente", diz vocalista do Carne Doce

Kamille Viola

05/10/2018 14h45

A vocalista e letrista Salma Jô. Foto: divulgação/Filipa Andreia

Depois de ganhar destaque no cenário independente nacional com o disco "Princesa", em 2016, o grupo goiano Carne Doce lançou em julho deste ano seu terceiro trabalho, "Tônus". Dessa fez, o grupo, que foi fundado pelo casal Salma Jô (vocal) e Macloys Aquino (guitarra), e conta ainda com João Victor Santana (guitarras e sintetizadores), Ricardo Machado (bateria) e Aderson Maia (baixo), mostrou um trabalho mais introspectivo. Se no álbum anterior, a banda ficou com fama de feminista por conta de músicas como "Artemísia", sobre aborto, e "Falo", sobre várias faces do machismo, agora o discurso não é tão direto. Nem por isso menos importante.

"Só da gente colocar nossas emoções e acrescentar essas emoções a um cenário que já esta dominado por emoções masculinas, e a a gente já conhece demais como é o universo masculino, eu acho que é positivo, acho ótimo", comenta Salma Jô sobre a geração de cantoras e compositoras da qual faz parte. O trabalho vai ser apresentado pela primeira vez no Rio nesta sexta-feira (5), no Circo Voador, e ela conversou com o blog sobre a atual fase da banda.

Queria perguntar sobre a experiência de vocês de se apresentar aqui no Rio. Como foi até então e como está a expectativa para apresentar o novo show?

Sempre fomos muto felizes em tocar no Rio, já temos um público grande e carinhoso aí, já tocamos quatro vezes no Circo Voador, o que sempre deu muito orgulho para nós, porque é um dos lugares não só mais renomados e prestigiados do pais, mas também é um lugar que tem um clima, uma vibe, uma energia que é muito boa, e que é um dos preferidos da gente de tocar. Além de cidade ser realmente maravilhosa (risos), né?

Como tem sido a recepção ao show do disco novo?

A produção está mais especial, mais sofisticada, mais elaborada, agora a gente tem uma equipe maior, a luz é uma coisa especial nesse show, ela e o meu figurino e a minha performance. Então está tudo mais elaborado. Estamos trabalhando para o nosso show ficar cada vez maior e mais bonito. Mais showzão.

As músicas do "Tônus" são bem diferentes do trabalho anterior, são menos barulhentas, digamos assim, mais introspectivas. Como está sendo montar o repertório?

Tem bastante coisa antiga, muitas músicas que as pessoas ainda gostam dos dois primeiros disco que continuam no show. A gente teve um trabalho para elaborar esse setlist e mesclar as músicas mais suaves com as mais explosivas, mas está um show assim mesmo, uma mescla de suavidade com explosão mesmo, com as músicas antigas e as músicas novas.

O disco toca em temas que têm a ver com o sexo e o desejo. Li algumas entrevistas suas em que esse tema era abordado. A impressão que eu tenho é que, quando é uma mulher escrevendo sobre esse tema, embora isso não seja inédito, isso sempre rende perguntas em torno disso. Você se sentiu mais exposta por ser mulher?

Desde o primeiro disco eu escrevo não só sobre assuntos eróticos, mas sobre assuntos que as pessoas entendem como confessional, visceral e dedo na ferida, então eu gosto de assuntos meio… até complicados mesmo. Eu não me incomodo muito com a exposição e até flui para melhor para mim esse tipo de composição que é mais confessional, mais escrachado, mais abrir o coração. Eu já estou meio confortável com isso. Teve umas críticas no sentido de gente entendendo que o disco inteiro está falando sobre sexo, porque pegou uma ou duas músicas e aí tirou as duas como o todo. Acho que as pessoas gostaram. Inclusive a música que mais bombou até agora, que viralizou no Spotify e até superou outros artistas grandes, mainstream, tipo Wesley Safadão, foi a "Durin". Que é a música mais explícita, mais erótica que tem no disco. Então acho que as pessoas, na verdade, talvez elas até gostem fazer pose de que acham imoral, safado demais ou indecente, mas no fundo todo mundo gosta desses assuntos.

Mas você não acha que as pessoas ficam querendo saber se você está falando da sua vida, mais do que quando são compositores homens?

Ah, sim. Acho que as pessoas pensam que é mais autobiográfico, que eu tenho menos capacidade criativa de imaginar outros personagens que não eu mesma. Acho que rola um pouco disso. Mas eu como letrista já tenho três discos, então, apesar dessas críticas, a gente recebe também muito amor, muito incentivo, muita gente me incentiva muito.

Você é parte de uma geração que tem muitas mulheres que não só são cantoras, mas também compositoras. Como você enxerga isso? Por que você acha que justamente agora estamos vendo essa quantidade de mulheres que cantam e compõem?

Eu acho ótimo, acho que a gente só acrescenta com esse tipo de vocabulário e de linguagem das mulheres. É lógico que, pelo feminismo como pauta ter se popularizado, ter ganho mais espaço como pauta, também as mulheres artistas e compositoras ganharam mais visibilidade, mais destaque, passaram a ser mais valorizadas. Eu acho que é um ótimo momento mesmo para autoras mulheres. Talvez as pessoas esperem que, por serem mulheres, toda a autoria vá ser feminista, no sentido de político ou militante. Mas eu penso que, só da gente colocar nossas emoções, e acrescentar essas emoções a um cenário que já esta dominado por emoções masculinas, e a a gente já conhece demais como é o universo masculino, eu acho que é positivo, acho ótimo.

A banda Carne Doce. Foto: divulgação/Rodrigo Gianesi

Inclusive o disco anterior tinha músicas que eram mais explicitamente feministas e agora eu senti que você foi mesmo talvez mais introspectiva na hora de compor, fez menos discurso. 

Sim, eu sinto que o discurso, talvez, no segundo disco, não só o meu, mas o que está em voga, porque ele combinou com a forma como eu fiz as letras também, talvez eu pudesse ter sido mais cuidadosa nas letras. Algumas letras se alinharam muito a um certo discurso, eu acho que até ficaram com um sentido mais limitado por causa disso, porque fica reduzido a um nicho e às ideias que as pessoas desse nicho têm, enquanto elas poderiam ganhar mais interpretações. Então eu tive o cuidado de [agora] fazer um disco que dialogasse menos com esses discursos já fechados, políticos, militantes, engajados.

Como foi para fazer o repertório do "Tônus"? Vocês chegaram e falaram agora vamos parar e compor para um disco?

Foi meio uma questão do timming da banda, porque a gente está lançando um disco a cada dois anos, então a gente já estava com essa previsão de que teria lançar um este ano. E aí, no fim do ano passado, a gente teve que tirar um tempo mesmo para compor essas músicas, um tempo rápido, um ou dois meses, para fazer as músicas para o disco, então foi meio focado para ele. Não foi assim: ao longo dos dois últimos anos a gente foi compondo várias músicas e juntou todas. Inclusive isso é uma coisa que reflete um problema do nosso trabalho, porque, como a gente é artista independente, a gente se autoempresaria, a gente faz muito mais o trabalho empresarial mesmo do que o trabalho artístico, e às vezes não dá para ficar compondo num fluxo regular constante. A gente tem que vender os shows, a banda, tem que produzir etc.

Pensando nisso, você compuseram o disco pensando numa unidade, no som, na unidade. Por que vocês decidiram dar a ele esse nome, "Tônus"?

Bem, na verdade o tema que aparece na maior parte das músicas, mesmo que os assuntos sejam diferentes — às vezes tem uma música que está falando sobre sexo, como "Comida amarga", sobre rejeição, se sentir rejeitado no amor, e outra está falando mais de política, como "Golpista", e outra de família e de trauma familiar, e outra da minha relação com as minhas irmãs… Mas, enfim, em quase todas as músicas têm um sentimento que aparece, que é o de insuficiência, de se sentir pequeno, insuficiente, de… Qual é a outra palavra pra isso (risos)? Acho que insuficiência mesmo, porque você não consegue ser tudo o que você quer, não consegue refletir e ser forte o suficiente, e isso reflete um pouco do país e das crises de representatividade, de falta de senso de coletividade que a gente está tendo e a gente está ficando cada vez mais individualista e tal. Também tem muito a ver com a internet. Mas acho que esse sentimento de insuficiência, de falta também de diálogo da esquerda, entre os nichos, que está se polarizando cada vez mais e não conseguindo dialogar — também no segundo disco tive muitas críticas no sentido de que estava fazendo música feminista enquanto eu não era feminista o suficiente ou legítima o suficiente pra falar desses assuntos —, então essa falta de legitimidade, essa falta de suficiência, de ser bom o suficiente para o amor, na política, como cidadão, enfim, ela está nas letras dessas músicas, e "Tônus" é uma música que também fala dessa sensação de insuficiência, de não ser bonito, forte ou jovem. Mas esse nome, essa palavra, é positiva e dá uma ideia de superação ante isso tudo, de tonificação (risos), de ficar mais forte, de resiliência. Então a gente gostou desse nome, é uma ideia mais positiva ante esse sofrimento todo. Acho que a Carne Doce traz um pouco disso, porque gente que fica falando dessas feridas, mas passa também uma ideia de que está se consolando, assim, junto com o nosso público, de que a gente entende essas feridas, essa dor, e que só de falar isso já é um pouco terapêutico e traz um pouco de força.

Vai lá:
Carne Doce
Quando: Sexta-feira, 5 de outubro, às 22h (abertura dos portões)
Onde: Circo Voador. Rua dos Arcos, s/nº, Lapa
Quanto: de R$ 40 (meia-entrada com 1kg de alimento)

Sobre a autora

Kamille Viola é jornalista, com passagens e colaborações por veículos como O Dia, O Globo, O Estado de S. Paulo, Billboard Brasil, Bizz e Canal Futura, entre outros. Nascida e criada no Rio, graças ao jornalismo já andou pelos mais diversos cantos da cidade.

Sobre o blog

Do pé-sujo mais tradicional ao mais novo (e interessante) restaurante moderninho, do melhor show da semana à festa mais comentada, este blog busca fazer jus à principal paixão do carioca: a rua.

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